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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Bacia De John Wayne - João César Monteiro (1997)

Os filmes de João César Monteiro são com frequência rodeados de uma significativa polémica que não raro os transcende, enquanto objectos fílmicos, para se situar na postura peculiar do seu autor, cultivando uma marginalidade provocadora, mas usando paradoxalmente o trunfo da integração enquanto cinema de culto."À flor do mar" foi, por exemplo, um filme tardiamente exibido no circuito português, apesar de uma distribuição comercial em França, e "O último mergulho" (segmento da série televisiva "Os quatro elementos") parecia transgredir num diálogo obsceno os limites do meio a que se destinava. "A bacia de John Wayne" foi recentemente estreado, queixando-se agora o cineasta da forma como foi retirado do cartaz. A verdade é que a obra de João César Monteiro ganhou um fôlego novo com o personagem de João de Deus, criado em "Recordações da Casa Amarela" e retomado em "Comédia de Deus". Entretanto João César Monteiro teria planeado uma terceira parte, "As bodas de Deus", projecto adiado numa querela com o produtor. "A bacia de John Wayne" surge nesse intervalo e tem sido tomado como um filme menor, um pouco como "O último mergulho". No entanto, e ao contrário de "O último mergulho", o filme tem uma dimensão que não parece condizer com essa génese circunstancial."A bacia de John Wayne" é um título que já há anos andava na boca de João César Monteiro e impressiona desde logo pela sua estranheza. Na realidade é difícil de decifrar se não se associar à informação de um diálogo com o falecido crítico dos "Cahiers du Cinèma" Serge Daney referente ao andar característico de John Wayne com uma peculiar oscilação da bacia.A citação, neste caso dupla, e a mistura de contextos é uma das características do que podíamos designar pelo método de João César Monteiro. Na realidade João César Monteiro parte de diálogos clássicos, ou contemporâneos, e o seu cinema constrói-se por quadros, onde a coerência se houver não é a da ordem narrativa, mas a do fluxo de uma exposição crua dos sentimentos e de notórias obsessões que dão uma unidade temática ao cinema de João César Monteiro.A esse nível "A bacia de John Wayne" volta a um método de construção de uma fase anterior da sua carreira, notoriamente expressa em "Veredas", e que embora assumindo a provocação mais directa e verbal que estética, guarda semelhanças com o cinema quase único de António Reis e Margarida Cordeiro. Se quisermos, João César Monteiro opta aqui pelos grandes quadros, com um ritmo interior a cada sequência que funciona quase como um objecto autónomo, sem as preocupações narrativas do díptico de João de Deus. Mas o personagem (interpretado inicialmente por João César Monteiro) percorre igualmente "A bacia de John Wayne" - desta vez num francês Jean de Dieu que acompanha Max Monteiro (ora personagem, ora pseudónimo das fichas artísticas do seu filme), também dito Henrique, naturalmente de outras navegações, que apontam para a sequência final do pólo norte, anacrónica na mistura de estilos do cinema documental anterior ao sonoro e do registo televisivo actual. As referências ao personagem de Deus, e a sua personificação na própria interpretação, numa metáfora do cineasta como criador de um mundo cinematográfico, embora num contexto alegórico onde prevalece a lógica dos grandes quadros, que apontam uma estrutura musical, encaminham o cinema de João César Monteiro para um dilema que lembra o cinema de Pasolini, onde o abjecto e o metafísico se cruzam com frequência, se quisermos no sentido duplo da escatologia, que quer dizer tanto "tratado àcerca dos excrementos", como "doutrina das coisas que deverão acontecer nos fins do homem e do mundo".É assim que "A bacia de John Wayne" cruzando textos de Strindberg e de Teixeira de Pascoaes, se propõe uma reflexão metafísica, mas como se as palavras não pudessem nomear aquilo a que se referem se banalizam num discurso obsceno. Esta cisão de significantes, onde a transcendência ou o amor dão lugar ao venal e à prostituição, pode parecer perturbante, mas encerra uma desconfiança inteligente dos valores onde se arrumam muitas vezes visões maniqueistas e cerradas do homem, simultaneamente puro e pulha com que João César Monteiro insiste em conviver.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias

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Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

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