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Foto do escritorAntónio Roma Torres

OXALÁ - António-Pedro VASCONCELOS (1980)

UM CINEMA DA NÃO DESILUSÃO


António Roma Torres


Fui convidado para apresentar na Casa do Cinema Manoel de Oliveira o filme Oxalá (1980) de António-Pedro Vasconcelos num ciclo que pretende confrontar o cinema de Oliveira com o percurso paralelo do cinema português, particularmente nos anos 70 e 80.


O filme foi a segunda longa-metragem de ficção de António-Pedro Vasconcelos e integra, com Perdido Por Cem (1973) e O Lugar do Morto (1984), uma trilogia em torno do 25 de Abril, embora o foco pareça centrar-se nas histórias sentimentais que se cruzam num período de grandes mudanças e interrogações da nossa memória colectiva.


O protagonista, José Caeiro (Manuel Baeta Neves), exilado em Paris é, aliás, abruptamente despertado logo nas cenas iniciais, numa noite de amor ocasional, pela notícia de uma “révolution au Portugal”, na madrugada de 25 de Abril de 1974.


Perpassa obviamente no filme um certo tom nouvelle vague, versão Truffaut, L’Homme qui Aimait les Femmes (1977), mais romântico e sensual que o cerebral e mais directamente político Godard, que corria então em pista paralela.


O clima, porém, é tudo menos exaltante. O que o filme pretende retratar é a ressaca, tanto no amor como na revolução. “Toda a gente está na merda”, desabafa-se no epílogo outonal, já quatro ano passados.


José Caeiro coincide com os outros protagonistas na trilogia inicial de António-Pedro Vasconcelos, retomados aliás mais tarde, de certa maneira, em A Bela e o Paparazzo e Km 224. É “um tipo que se deixa conduzir pelos acontecimentos” (ver António-Pedro Vasconcelos em entrevista comigo, J. Henrique Barros e Sérgio C. Andrade, A Grande Ilusão, nº 1, Outubro, 1984, p. 19). De certa maneira funciona como contraponto de Manuel (Ruy Furtado), caricatura do macho provinciano do antigo regime, na sombra do qual Filipe (Manuel Sande e Castro), aristocrata, melómano, de uma gentileza envergonhada, espera o seu momento, que, aliás, será ironicamente breve.


Mas Oxalá esboça, por outro lado, o retrato das mulheres que gravitam a maior ou menor distância em volta de José, não só os anunciados por intertítulos, Leslie (Karen Blanguernone), fotógrafa de aparições fugazes que acaba por partir para a América, Françoise (Judith Magre), viúva de um escritor argentino de quem se torna um sorna secretário, motorista e amante, e Lídia (Lia Gama), a mãe distante de uma filha que deixara em Portugal, mas também a excitante Maria (Marta Reynolds), ainda sem idade legal para ver O Último Tango em Paris, ou a sua mãe e esposa de Manuel, Inês (Laura Soveral), que, após a morte do pai, irá sair da sua aparente resignação.


Ao longo do tempo narrativo do filme José torna-se escritor e de certa maneira mais autónomo e com vida própria, embora nunca pareça aceder completamente a uma condição adulta, um pouco como a transformação política que lhe serve de pano de fundo. O livro que escreve intitula-se Monólogos de Exilados e é de certa maneira esse exílio que se torna uma atitude paradoxalmente interior que parece ter o seu limite último no suicídio de João, o cineasta radicalizado.


E o exílio interior acaba por se conjugar também no feminino, em três quase-monólogos, de Lia Gama, perdida consigo num discurso circular, Laura Soveral, equilibrando a amargura na pose de uma aparente serenidade, e Teresa Madruga (Tina), na tensão febril do tempo apressado do táxi na cidade, a que acresce Adelaide João, no testemunho da vizinha que conta a história, parecendo agora falar na presença de uma câmara exterior no entanto invisível.


Nesse tempo distante António-Pedro Vasconcelos recusa activamente o campo/contra-campo – “uma das coisas que para mim estava completamente interdita era fazer um campo/contra-campo, ele tinha acabado”, disse-nos o cineasta na entrevista citada. O novo cinema de então procurava, por inépcia ou ousadia, não se deixar encerrar na esfera fechada do olhar cruzado que a linguagem cinematográfica estabelecera. A câmara como que se denunciava complementando o comentário da explícita narração off.


É muito interessante poder ler agora o explícito epílogo do filme no debate das formas do cinema, do pensar sobre o cinema, que não é tanto entre um cinema de massas que espera um espectador preguiçoso e o cinema de autor que o tenta desinstalar dessa aparente passividade, e que só a miopia do tempo permitiu julgar como traição ou deserção de um pressuposto campo justo, por simples hipoteca a interesses de ordem comercial.


António-Pedro Vasconcelos fora o mais acérrimo defensor de Manoel de Oliveira durante a atribulada produção de Amor de Perdição, nos polémicos debates dos realizadores portugueses no Centro Português de Cinema, cooperativa dos cineastas com a qual a Fundação Calouste Gulbenkian construíra um protocolo de colaboração, e, na V. O. Filmes que constituíra com Paulo Branco, ficaria ligado à produção de Francisca, o primeiro grande sucesso de público e de crítica de Oliveira em França.


Anunciando a Inês os seus projectos literários, José parece constituir um duplo do cineasta ao propor um ponto de vista crítico sobre o mito de Simão, abordando o livro de Camilo na perspectiva de uma confusão entre “os obstáculos da paixão e a paixão dos obstáculos” e afirmando-se “não querer ficar instalado no que escreveu e continuar a escrever as mesmas coisas pela vida fora”.


O cineasta cubano Julio Garcia Espinoza propusera três anos antes um “cinema imperfeito”, como via para o cinema novo terceiro-mundista, incapaz de competir com o também grande império norte-americano nas regras da produção do cinema, embarcando no que mais tarde João Mário Grilo, com o filme A Estrangeira também produzido então pela V. O. Filmes, designaria como “cinema da não ilusão”, nas palavras do crítico Luís Miguel de Oliveira “um cinema que não esconde o que é e de onde é, nem em que circunstâncias é feito, um cinema que recusa a ilusão de tentar passar por outro cinema” (in Mil Folhas, Público, 29/12/2006).


António-Pedro Vasconcelos, pelo contrário, parece ter começado aqui a não desistir de um cinema perfeito ou talvez simplesmente a não aceitar hipotecar o cinema apenas àquilo que o dinheiro pode comprar. “Eu apercebi-me, entre outras coisas, que o campo/contra-campo é uma coisa muito complexa. Para já dá um gozo enorme na montagem. E não é de maneira nenhuma uma coisa defensiva. É de um enorme rigor” (entrevista citada).


Filmar simplesmente foi a escola de António-Pedro Vasconcelos mas isso com ele não seria nunca um caminho de facilidade. O "enorme rigor" a que ele se foi impondo derivava de uma consciência da linguagem cinematográfica, da narrativa e de uma desejada sintonia com o espectador, porém a não confundir nunca com qualquer manipulação ilusionista. O cinema para António-Pedro Vasconcelos criava uma realidade e nesse sentido mente. Tem que prever exactamente a reacção do público e funcionar. Lembro de um dia ele explicar-me à mesa num restaurante essa concepção muito visível até certo momento no cinema americano, rememorando a cena dos chocalhos na expressão cómica de Jack Lemmon em Quanto Mais Quente Melhor. "É necessário ter o sentido exacto do doseamento das réplicas, como no teatro. Se se diz uma graça, o actor não responde imediatamente a seguir e dá tempo a que o espectador ria." (ainda na entrevista citada). Os chocalhos tinham na cena essa função, dar tempo ao riso do espectador.


Essa mesma vontade de diálogo, que não se alheia nunca do espectador nessa esfera fechada que o cinema pode constituir, talvez o tenha aberto à necessidade de abordar o luto de Abril, da quebra do entusiasmo ou da desidealização das utopias, em que Oxalá se inscreveu, juntamente com Bom Povo Português de Rui Simões e porventura nenhuns mais, e passou a ser no plano estético como no plano político, uma espécie de reserva moral, que se poderá contrapor como o que se poderá chamar “o cinema da não desilusão”. E a dupla negativa não vale aqui como afirmação da ilusão. É antes como se diz no próprio filme “não querer pactuar com o fracasso e chorar-lhe no ombro”.

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