top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Teu Rosto Será o Último - Luís Filipe Rocha

Atualizado: 15 de jul.

ENTRE O DOM E A DOR

António Roma Torres

 

O romance de João Ricardo Pedro O Teu Rosto Será o Último, primeira obra do autor, ganhou o prémio Leya 2011 e foi o maior êxito de vendas entre os galardoados com o mesmo prémio. Aparentemente a adaptação cinematográfica de Luís Filipe Rocha não gozou da mesma fortuna. O problema contudo não parece ligar-se com o mérito próprio já que é em larga medida estrutural e radica na articulação pouco cuidada entre os justos incentivos do Estado à produção cinematográfica e a forma como depois deixa os filmes produzidos largados à sua sorte no mercado da distribuição e exibição cinematográficas, também eles numa crise própria que não é só portuguesa e está ainda a atravessar sinais de um “longo COVID” cinematográfico que quase abateu o cinema como o tínhamos conhecido, e que dá ao cinema português já à partida poucas condições de encontro com o espectador definidas com um exíguo número de sessões e em horas inacessíveis a uma larga fatia do público.

Luís Filipe Rocha é em todo o caso um nome seguro no cinema português surgido logo após o 25 de Abril, destacado, aliás antes, com a interpretação de um dos principais papéis em O Recado (1971) de José Fonseca e Costa. Luís Filipe Rocha frequentava ao tempo o grupo de teatro universitário, já com um relevante significado político, e acabara por exilar-se no Brasil poucos meses antes da revolução de Abril, ligando-se no imediato regresso às unidades de produção no perímetro do então Instituto Português de Cinema com a realização do seu filme de estreia, num registo de inquérito num bairro de lata na periferia de Lisboa, significativamente intitulado Barronhos – Quem Teve Medo do Poder Popular? (1976), para logo depois, filmar A Fuga (1977) já na produtora Prole Filme, a que esteve ligado com Henrique Espírito Santo e Miguel Cardoso, uma escorreita narrativa, a preto e branco e em 16 mm, sobre uma mítica fuga de um preso político da cadeia de Peniche, durante o regime anterior.

Curiosamente é com o dia 25 de Abril de 1974 que abre O Teu Rosto Será o Último, mas não na forma ilustrativa que alguns filmes menores oportunisticamente aproveitaram no próprio cinquentenário da efeméride.

O que vemos logo no início do filme de Luís Filipe Rocha são as imagens televisivas da apresentação da Junta de Salvação Nacional observadas ao fim do dia por um solitário Augusto Mendes (Pompeu José), médico que se radicara após o curso num meio do interior português, onde chegam as notícias do movimento militar distante na capital, comentadas pela suposta sabedoria do seu pequeno grupo de amigos no convívio diário.

O filme vai-nos revelar uma saga familiar de diferentes gerações e da passagem do tempo, mas Luís Filipe Rocha evita qualquer inclinação épica pelo grande romance que víramos, por exemplo, em A Herdade de Tiago Guedes. Pelo contrário o que parece interessar Luís Filipe Rocha é a aparente imobilidade dos seus personagens, excelentemente retratados com o espaço e o tempo da reflexão que nos dá acesso ao que pode ser um sinal de resistência da consciência individual e que inevitavelmente vai apagar o drama numa espécie de continuidade existencial sempre provisória.

Esclareça-se desde já que o filme procura uma clara definição do contexto histórico (a referência ao 25 de Abril e mais significativa às guerras de África), mas não é a agenda política que o conduz e isso marca-se claramente no personagem de Duarte, neto do médico e a passar temporadas em casa do avô, inicialmente uma criança de 7 anos (Jaime Távora) que faz perguntas - à mãe Paula (Rita Durão) na cozinha (“quanto pesa a minha mão?”) ou ao pai António (Nuno Nunes) a cuidar dos pés massacrados por uma praga contraída na guerra (“como é que sabes qual foi o dia em que esses bichinhos entraram para os teus pés?”) – ou deixa a avó Paula (Teresa Madruga) fora de si (“o menino está possuído por alguma coisa ruim”).

Tudo começa pelo espanto da família quando o pequeno Duarte recebe como prenda de Natal um orgão eléctrico de brincar, ainda sem pilhas, e não se cansa todo o dia tocando-o com o peso das suas mãos sem produzir coisa outra que um intrigante silêncio. É algo que o habita secretamente talvez como o mundo de onde vêm as suas surpreendentes perguntas. Mais tarde o professor de música explicará que Duarte tem um dom.

Já se vê que embora de uma forma subtil o filme desloca a narrativa naturalista e psicológica para um outro plano de ordem metafórica, sendo a lógica das palavras, do discurso, a dominante, e isto nem sequer em obediência à origem literária do argumento. Por isso laborou num erro a crítica que estranhou a inverosimilhança de alguns passos ou ajuizou que o filme se excedeu no domínio da palavra.

Por outo lado há segredos, ou silêncios, que, entre outras coisas, adensam também a expectativa e atestam que Luís Filipe Rocha assegurou como sempre um exímio domínio da narrativa cinematográfica. Como ele repete muitas vezes trata-se de tentar “contar bem uma boa história”.

Mas é muito claramente sobre a música, tanto na composição como na execução instrumental, ou melhor talvez, sobre a arte em geral que o filme pretende falar. No fundo a vivência da criação como produção interna sempre destinada, talvez condenada, a encontrar uma realização, concretização, apenas parcial, e, portanto, sobrevivendo num processo de luto que acompanha o coming of age até a idade adulta, e depois.

Duarte com 13 anos (Alexandre Carvalheiro) defronta-se com o limite da loucura (“Schumann aos 43 anos estava internado num hospício”). Duarte com 20 anos (Vicente Wallenstein) interroga-se sobre o próprio pai (“acho que ele não quer tirar a guerra de dentro dele”).

O que começou por ser um dom torna-se uma dor, uma doença. Perde os sentidos sobre o piano. O corpo não acompanha aquela peça de Bach e teme que se possa estender a toda a sua música. "Que coisa é que havia encontrado em Beethoven e agora encontra naquelas duas peças de Bach?", pergunta-lhe o médico (Cláudio da Silva) numa excelente cena clínico-musical. E a resposta é, “solidão e morte”, expressão de um dilema que no fundo afecta todo o percurso humano.

Luís Filipe Rocha faz um trabalho notável de adaptação, muito próximo do livro mas ao mesmo tempo ganhando paradoxalmente uma vida própria, de certa maneira dobrando a voz do autor literário, dando por exemplo um maior desenvolvimento ao personagem de Leandro (Adriano Luz, uma presença regular no nosso cinema, aqui talvez no seu melhor papel), antigo comandante de companhia de António na primeira comissão em Angola sob as ordens superiores do então tenente-coronel António de Spínola e agora professor de piano de Duarte, e afinal o narrador que pontua todo o filme.

Mas é bom reparar como o filme se deixa prender às palavras e grande parte da acção não é transposta para a narrativa cinematográfica, não acontece nas imagens, é antes contada, elaborada no diálogo entre os personagens, na leitura de cartas e outros testemunhos, num tom dialógico que Luís Filipe Rocha tinha já elaborado muito bem num filme mais directamente documental, Rosas de Ermera (2017), um testemunho dialogado pelos irmão sobreviventes de Zeca Afonso, numa evocação de um episódio esquecido da história portuguesa e do drama da família na invasão japonesa de Timor em 1941 que apanhou na ilha o pai juiz, a mulher e a irmã mais nova, enquanto os dois irmãos mais velhos prosseguiam estudos universitários na metrópole, sem notícias dos pais e até os admitindo mortos. 

O próprio romance original construía-se como um emaranhado de pequenas histórias, a que a transposição de Luís Filipe Rocha é bastante fiel, por exemplo no stress pós-traumático de guerra de António, que culmina na cena em que Duarte, jovem adulto, destrói pelo fogo as partituras pacientemente acumuladas como uma história arquivística de toda a música e o pai o aconselha a guardar as cinzas num frasquinho como prova objectiva da vivência emocional no limite do que é possível recordar (“tenho um garrafão de petróleo na garagem...sei do que falo, caraças! com o petróleo é tudo mais rápido, e com o napalm, então, era um instantinho...aqui estão algumas cinzas, para teres uma prova real do que fizeste hoje; um dia...vais acordar aterrorizado, sem teres a certeza se não foi um sonho; nesse dia...tocas nisto e lembras-te do que aconteceu”), ou na via sacra de um luto antecipado no tratamento oncológico de Paula (“ser órfão é a coisa mais triste do mundo…mas mais tarde ou mais cedo todas as pessoas acabam por ficar órfãs”). Muitas vezes os pormenores são repetidos quando diferentes acontecimentos são contados em vários testemunhos como o regresso da segunda comissão em África de António destroçado no cais, pela mãe na pastelaria e depois pelo inspector Monteiro (Dinarte Branco) que averigua a morte de António, antes seu companheiro na guerra; ou nas cartas recebidas da Argentina pelo avô, do antigo colega Policarpo (Luís Rizo), agora proprietário de um hotel decadente, que desvendam “o maior beethoviano de sempre”, Joseph Castrop (Sérgio Silva), pianista alemão sob o domínio nazi e amputando a mão após o abandono da Alemanha no pós-guerra, que o professor Leandro biografara e em busca do qual estivera na Argentina (o livro de João Ricardo Pedro teve, aliás, o título de A Mão de Joseph Castrop na sua tradução francesa) - “o maior beethoviano de sempre” é também o epíteto que os colegas exibem numa tarja na audição de Duarte, jovem adulto, no Conservatório, que aliás na economia narrativa do filme culmina a excelente direcção musical de João Paulo Esteves da Silva dos três jovens actores-pianistas em tomada de som directo.

Aliás é notável a resolução no filme de todo esse fio narrativo, com Duarte e Luísa (Margarida Lucas), sua companheira de infância, lendo na penumbra as cartas de Policarpo após o funeral da avó, no fundo a última de todos os seus mortos, tudo terminando num intertítulo poético citando a Nobel da Literatura 2020, Louise Glück, justamente considerada muitas vezes por uma poética da memória traumática, “no fim do meu sofrimento havia uma porta”.

E precedendo-a é também notável essa espécie de despedida de Leandro e Paula, no plano mais profundo certamente de Duarte no momento ausente de casa e para quem a vida continua: o professor de piano que acabada a carreira vai viver para Viena, por sinal capital da música mas também das psicoterapias (a psicanálise de Freud, o psicodrama de J. L. Moreno e a logoterapia de Viktor Frankl), e a mãe de Duarte, afectada pela queda de cabelo dos tratamentos oncológicos, evidente na sua intimidade doméstica e no despojamento da sua doença terminal.

O filme situa-se assim no plano da reflexão existencial, para a qual pode abrir-se ou não essa porta, mais do que na mera empatia da verosimilhança psicológica que o cinema tem construído em muitas adaptações literárias, e que de certa forma Luís Filipe Rocha já desde início associou ao neo-realismo literário de Manuel da Fonseca em Cerromaior (1980), e depois prolongou em Sinais de Vida (1980), o autor, e Sinais de Fogo (1995), a obra, num estudo de uma larga década sobre Jorge de Sena, apagando todo o efeito heróico, na importância da aceitação da perda e até da auto-mutilação na construção biográfica particularmente no acesso à idade adulta, como bem tinham identificado também Virgílio Ferreira em Manhã Submersa, e Lauro António no filme, e de certa maneira Luís Filipe Rocha tinha esboçado em Adeus, Pai (1996) e  A Passagem da Noite (2003). E principalmente numa construção dialógica que constituía o cerne de um dos seus mais belos filmes, A Outra Margem (2007), na relação entre um tio que faz travesti num night show e um sobrinho que participa num grupo de jovens com deficiência intectual no Crinabel Teatro.

Há uma frase do romance de João Ricardo Pedro, dita por Duarte, que parece ter inspirado particularmente Luís Filipe Rocha: “Não fui eu que comecei a tocar piano. Foram as minhas mãos”. A acção acontece e o eu vem depois, como consequência que sempre necessita de uma integração, uma pacificação, seja no dom (que inquieta), seja no trauma (que parece não se poder suportar).

44 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Kommentare


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page