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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Recado - José Fonseca E Costa (1972)

O Recado, de José Fonseca e Costa, Portugal, 1972

António Roma Torres, Cinema Português Ano Gulbenkian, ed. José Soares Martins, Março 1974, pgs. 82-86

 

Cinema português, na linha existencialista de Domingo à Tarde e de O Cerco, O Recado apresenta-se como cinema de uma geração, cinema feito em atraso, cinema de projectos antigos. Trata-se, no entanto, de um filme bem actual que, à maneira de O Cerco, mas mais politizado e consciente, tenta interpretar na ficção de uma história entre dois mundos (personagens marginais, personagens europeizadas), uma situação presente, em que as alternativas se apresentam pouco claras. Por detrás da psicologia é o momento sociológico; cinema português na encruzilhada (para fraseando o título de uma obra sobre o novo cinema em Espanha).

"Um filme rude e sem grandes floreados, com a máquina quase parada a ver as pessoas viver", foi como José Fonseca e Costa definiu o seu filme (Flama, nº 1201). Porém, se assim se tentou uma obra linear de mais fácil recepção, a pretensão realista e documental como opção de estilo (aliás também referida a um tempo da crítica de cinema, na linha de André Bazin e das suas reflexões sobre o neo-realismo italiano a abrir o caminho da «nouvelle-vague», que terá influenciado a actividade teórica de Fonseca e Costa) impossibilitou um mais profundo desenvolvimento de alguns dos temas lançados. Efectivamente o filme é na realidade maisabstracto e elaborado do que as afirmações do autor pretendem; o seu desenvolvimento consolida uma visão de um espaço e de um tempo: os seus personagens são característicos e representativos; tudo tendo a ganhar com um acento na atitude crítica, reflexiva, de um cinema-escrita que pretendesse evidenciar contrastes e conceitos mais do que retratar personagens, «pessoas a viver». Aliás é precisamente no aspecto documental que o filme mais se ressente da falta de garra de Fonseca e Costa, e uma outra opção a este nível só poderia clarificar os seus objectivos e a própria história da realização de um filme após anos de expectativa e de reflexão, entre a realização de curtas-metragens e uma actividade crítica e cineclubística. Mesmo a vocação realista de ficção cinematográfica não é solução única, nem outras opções de início afastariam o filme de uma atitude de intervenção que, por si só, é já única no cinema português actual.

 

As primeiras cenas são a melhor demonstração do que dizemos. Constituem uma introdução que desde logo situa o filme a um nível sociológico, levando o espectador a ver tudo o mais nesse sentido. O velho: "isto agora é que está bom", "só está mal para os velhos e os doentes", "ainda me lembro dos republicanos em luta contra os monárquicos". Uma festa popular, a procissão, o cântico: "enquanto houver portugueses..." (habilmente a banda sonora evidencia o passo da letra). No mesmo local, na mesma terra (e a terra é mais do que o Cabo Espichei): um jovem é morto por um grupo de malfeitores. Fonseca e Costa lança bem os dados da questão, embora a sua câmara distraída não dê de cada imagem a força poderosa que poderia ganhar o filme (o que a montagem elaborou já se tinha de algum modo perdido na rodagem).

 

Porém, o posterior desenvolvimento do filme valoriza a ficçâo centrada em Lúcia, e os apontamentos do regresso de Francisco (o jovem que víramos morrer) tornam-se deslocados saltos no tempo que mal se quadram com a linearidade narrativa do filme e, de modo mais flagrante com a evolução de análise psicológica que o domina.

 

A partir daí o filme é o retrato de Lúcia, do seu vai-vém entre diversos personagens, a retomar a protagonista de O Cerco. Só que aqui a verdadeira protagonista não é Lúcia; não é ela que «revela», mas sim uma resposta-reacção aos problemas que a envolvem e nos envolvem. Há quase um paralelismo estreito entre o escritor bêbado, o engenheiro, Maldevivre e outros tantos personagens de Cunha Telles (o marido, o americano, o contrabandista). No entanto Fonseca e Costa vai mais longe na análise das motivações e das consequências, ganhando os seus retratos outra profundidade política.

 

António, o engenheiro, é um personagem-modelo do marialvismo português mais o desenvolvimento empresarial. A sua presença é um retrato sugestivo de um Portugal moderno, de auto-estradas, de sons omnipresentes dos noticiários e folhetins radiofónicos, de fortunas de totobola, etc.

 

Alcino, o escritor bêbado, é o intelectual à dimensão da publicidade que fabrica, dos compromissos de um quotidiano alienado, sobre o qual os whiskies se entornam em frases contestatárias.

 

Francisco, é a juventude de um personagem que o filme mal define. Sabe-se que foge, que regressa, que morre. Assumiu o confronto ("morreu porque quis", diz Maldevivre).

 

Leão de Pedra (como Belmondo), Beringela (inconsciente e bruto), e Tosco (pequeno e arrogante, justificando-se pela necessidade de ganhar dinheiro), são um grupo de malfeitores, que age à vontade e com poucas precauções ao serviço de dois personagens dos quais mais nada conhecemos do que a sua oposição ao cuidado e disciplina do doutor e de Polónio, através dos quais chega Lúcia o recado de Francisco (as gabardines são um convencional significativo na sua melhor definição).

 

Maldevivre, marginal como o Francisco e Polónio, é um saboroso retrato de um desencanto, humanamente rico, de quem perdeu a esperança na acção presente mas sabe esperar que "a raiva cresça".

 

Entre todos os personagens, Lúcia é a opção adiada, a oscilação entre Francisco e António. "Estão todos mortos", diz ela a Ana, "companheira de tortura no mesmo colégio". Presa à vida por um fio, uma decoração bizarra, umas cores mal combinadas, umas calças trapalhonas, que não são efectivamente atitudes muito eficazes. Por isso, queima tudo, calças, livros e as decorações mais contraditórias, e opta por um pretendente, de «chauffeur» e ramo de flores. Bem vestida, guardando apenas a poesia, deixa para trás o Portugal do mapa na parede e fecha a porta.

 

Se alguma coisa, por último, devemos reparar ao filme é o seu fatalismo, que não encontra saídas no gesto quixotesco de Francisco, nem na organização hierarquizada do «doutor», e acaba por aceitar a frase de Maldevivre: "De nós fica não o que fizemos mas a imagem disso". Perante as alternativas restritas que o filme admite (como diz Maldevivre: "Resta-nos hibernar para aí aos ventos e às pedras. Deixando crescer a raiva... À espera que a raiva rebente..."), evidentemente que a solidariedade de Maldevivre com o pescador situa a sua demissão a um nível muito diferente do «flirt» de Lúcia com o engenheiro.É essa, talvez, a ideia que Fonseca e Costa, em última análise, pretende transmitir. Quando se não pode fazer outra coisa há que, ao menos, manter a dignidade. Uma solitária mas independente dignidade.

 

O Recado é, ultrapassado o seu pessimismo contagiante, um filme fundamentalmente útil, mesmo nos seus defeitos de narração, na falta de força das suas imagens, que aliás se quadram com a aceitação das demissões da sua trajectória final. Angústia e desencanto, ingredientes de um existencialismo cinematográfico, franco, descendente, esse sim, de Antonioni (com quem Fonseca e Costa estagiou), estabelecem, em todo o caso, uma interrogação séria mais importante nas incertezas do presente desenvolvimentista do que na frustração e desencanto herdado do ambiente eufórico do pós-guerra, na vitória das democracias ocidentais sobre o fascismo.

 

A música de Rui Cardoso, de um impressionismo na linha de O Cerco, e a interpretação de Maria Cabral, de um naturalismo já muito gabado, são trunfos do filme que pouco importa realçar. Ao contrário, entre tantas interpretações desencontradas, a figura interiormente reflectida de José Viana, um Maldevivre em trajo de palhaço triste, é um bom retrato popular português, que o filme sublinha bem (a conversa entre ele e Lúcia é o melhor momento cinematográfico do filme), mas mereceria um melhor desenvolvimento.

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