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Foto do escritorAntónio Roma Torres

oKupação (2014-2024) - Rui Simões

Atualizado: 25 de ago.



QUANTOS CONTEXTOS PARA UM SÓ TEXTO?

António Roma Torres

 

Muito curiosamente Rui Simões apresenta uma “modesta” média metragem (23 minutos) imediatamente depois da sua primeira longa de ficção, Primeira Obra.

oKupação (2014-2024) foi filmado há dez anos nas instalações da TSF ocupadas pelo grupo de Teatro O Bando nos quarenta anos do 25 de Abril. Actualmente está em exibição no Museu Nacional do Teatro e da Dança em Lisboa, três vezes por dia à semana e cinco vezes aos fins-de-semana, desde 23 de Julho e até 22 de Setembro, inserido numa exposição que acompanha a programação de liberaLinda, uma encenação de João Brites a partir de Memórias de uma Tia Tonta de Natália Correia, pelo grupo de teatro O Bando, com novos espectáculos a realizar em 20 e 22 de Setembro de 2024 em comemoração dos cinquenta anos de Abril e do grupo.


E a primeira constatação a fazer é que o filme é muito mais parco em referências de contexto do que as que nos vimos obrigados a indicar neste início do texto.


De certa maneira assim como se diz na gíria futebolística que um jogador é um “falso lento”, quando pela velocidade de raciocínio supera outro que corre mais do que ele, também se pode qualificar aqui de “falso documentário” o cinema poético que Rui Simões descobriu desde Bom Povo Português e em que as imagens, os sons, o movimento, as palavras, a música, a dança como que se desprendem da realidade e formam outros sentidos que parecem sempre em aberto.


Por isso pode dizer-se que não se rendem, que mantém viva a ideia de liberdade, que não se conformam com um sentido único, de uma ordem simplificada que nos liberte da aparência de caos e confusão. “Letras e palavras à solta”, em festa e luta, numa ocupação que é democracia e revolução, onde Rui Simões faz um outro objecto-cinema, no fundo o anti Deus Pátria Autoridade, seu primeiro filme emblemático de um regime de exaltação da lei e ordem, analisado de forma didáctica sobre a própria essência do capitalismo, como suposta ordem natural das coisas.


Aqui, desta vez, reina a confusão do teatro como happening; há diversidade e igualdade num belo jogo paradoxal. O jornalista Paulo Baldaia, à época director da estação, é o cúmplice do acontecimento que parece surpreender toda a redacção, envolvida ou envolvente, permitindo questionar quem são os actores, quem é o público. E o acontecimento começa a desenhar-se em movimentos contraditórios, ora parecendo improvisos espontâneos, ora declamando, ora lendo em voz alta, no difícil desempenho de abraçar as palavras que enganam a verdade e a mentirologia da sua existência num dicionário (“eu vou ler: democracia em sentido rigoroso…” e a contracena oferecida pela montagem é uma expressão de enfado). “As palavras têm que nos ajudar a entender as novas ideias…se não existir uma grande diversidade de ideias não podemos encontrar um mundo novo”. “Sou eu que agora vou falar…há muito poucos que falam sobre a palavra igualdade…se cada um de nós for ele mesmo já ficamos todos iguais”.


E de repente entre os artigos da constituição que podem parecer palavras de ordem ainda revolucionárias, como o citado artigo 21º, lidas até à rouquidão, surge detrás alguém que declara “aqui não há disciplina de voto, aqui cada um tem direito à sua opinião”.


Erguem-se livros como punhos, num ensaio sobre a cegueira, único livro citado como título – Rui Simões e o grupo de teatro O Bando tinham feito em 2006 um Ensaio Sobre Teatro, filme que anunciou o segundo fôlego da sua obra de cineasta, um quarto de século depois de Bom Povo Português, e espectáculo teatral, sobre essa obra de Saramago - entre outras transcrições de poetas maiores da língua portuguesa das fronteiras mais alargadas e universais, anonimizados nas leituras, sem citação das fontes nem mesmo no genérico: da dor do brasileiro, João Guimarães Rosa em A Terceira Margem do Rio, em Primeiras Estórias, 1962 (“sou o que não foi…o que vai ficar calado”) à exaltação do português telúrico, Miguel Torga em Cântico do Homem, 1950 (“e apesar de tudo sou ainda o Homem…um bípede com fala e sentimentos”).


Rui Simões pretende talvez ser um condutor, Fellini perdido num outro ensaio de orquestra que precede e mostra a violência e a destruição escondidas no desejo de harmonia e perfeição que a utopia, palavra posta em evidência no jogo das cordas onde as letras se estendem como uma verdadeira roupa, obviamente promove.

 

oKupação culmina, aliás, num breve grande plano próximo do maestro Jorge Salgueiro que dá o sinal de entrada: da música, claro, Uma Pátria, cantata que na realidade, com música do próprio Jorge Salgueiro, associa dois poemas de Eugénio de Andrade, A Pequena Pátria em Os Lugares do Lume, 1998 (“a pequena pátria; a do pão; a da água; a da ternura tanta vez envergonhada”), e Frésias em Rente ao Dizer, 1992 (“uma pátria tem algum sentido quando é a boca que nos beija a falar dela”); mas também do genérico, em que quase se funde de imediato com o próprio nome do realizador-maestro a abrir a longa lista de colaborações em tão curto filme; e dos abraços e beijos, riso aberto e franco, e sentido da confraternização finda a ocupação-espectáculo, encadeados nas imagens de novas lutas, uma década depois, na greve no Jornal de Notícias ameaçado por uma venda de contornos duvidosos.


E no final do genérico e da cantata, uma das poucas certificações de contexto na atribuição de nova múltipla autoria, “uma ideia de Fernando Alves, com a colaboração da direcção da TSF, para comemorar na rádio o 25 de Abril de 2014”, enquanto num plano ligeiramente mais longo João Salgueiro termina a direcção da cantora, dos instrumentistas em off, e on alguns dos intervenientes na acção, pontuada também por fugidias imagens do próprio Rui Simões, primeiro atrás de uma pequena máquina de filmar no final da introdução com Paulo Baldaia a interpelar os supostos manifestantes, e a rimar com outra quase no final sem a máquina e integrando o grupo, visível quando se afastam as personagens em primeiro plano.


O filme oKupação de Rui Simões torna-se poético e, admitamos, no melhor sentido utópico ou revolucionário (“onde a política não se conciliar com a poesia não é possível …porque onde não houver poesia nada de real pode ser fundado “), porque apaga muitos dos sinais do contexto imediato, montado que foi uma década depois da filmagem, e abre-se a sinais de contexto mais afastados.


Repare-se como logo no início um dos raros apontamentos de contexto pontua a importância que a rádio teve no próprio 25 de Abril, o primeiro, com a ocupação do Radio Clube Português para a leitura dos primeiros comunicados do MFA previamente preparada através do testemunho de quem lembra a segunda senha do movimento, E Depois do Adeus por Paulo de Carvalho.


Mais uma vez, depois dos paralelos de Adeus até ao Meu Regresso e São Pedro da Cova e de Oxalá e Bom Povo Português, as obras de António-Pedro Vasconcelos e Rui Simões voltam a coincidir neste caso na recuperação da importância da rádio nas operações militares do 25 de Abril (ver o depoimento de Luís Macedo, capitão de Abril, adjunto de Otelo nessa noite e depois do 28 de Setembro ascendendo ao Conselho da Revolução, sobre a importância das senhas pela rádio e do controle das estações de rádio nas operações de um golpe militar, em Conspiração, ep. 9, 16:11, de António-Pedro Vasconcelos e as referências logo após o título inicial de oKupação de Rui Simões – “os meus pais fizeram muitas (ocupações)…foi na rádio, deu a senha para iniciar a revolução”, logo cantando “quis saber quem sou, o que faço aqui”, tornando a identidade também um ponto central da reflexão de Abril).


Evidentemente que celebrar a ocupação do Rádio Clube Português em 1974 com uma ocupação-teatro da TSF em 2014 ficou a dever também alguma coisa a uma década americana e no fim universal em que dois anos antes movimentos inorgânicos se atreveram a ocupar Wall Street no coração do próprio capitalismo, mas oKupação mostra ainda o que a rádio como canal de comunicação pode significar no mundo aparentemente hiper saturado dos media actuais (“a rádio tem esta magia que é não ter a imagem”, diz a repórter enquanto o espectador precisamente vê a imagem no filme, e é esta capacidade reflexiva do ouvido que Rui Simões já usara desde logo na tomada de posse de Otelo do comando do COPCON em Bom Povo Português, 25:05: “o Spínola está a dizer que é com redobrada satisfação…”).


oKupação, com a sua maiúscula avançada uma letra, fica com certeza para a História do Cinema Português e do 25 de Abril como um documento, para usar o lema da empresa produtora, de Real Ficção.


Este foi o 25 de Abril todos os dias. Cinquenta anos já.

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