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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Primeira Obra - Rui Simões

ELOGIO DA SINGULARIDADE

António Roma Torres

 

Primeira obra (exibido no IndieLisboa 2023) é um filme a vários títulos paradoxal. Na realidade transita subtilmente de um (Rui) Simões vários, que existiriam à partida, na vida como num filme, para o protagonista Simão, realizador de cinema também, particular, singular.

António Fonseca, o intérprete de Simão, está para Rui Simões como Philippe Léotard para Cunha Telles em Pandora (antes Setembro ou Uma Ternura Confusa), onde aliás o cineasta tinha tido um pequeno papel, ou Claude Brasseur para Fernando Lopes em O Fio do Horizonte (aliás, produção Cunha Telles também de 1993), aí num texto de Antonio Tabucchi que o distancia, ou ainda, mais próximo num cineasta que acompanha um luso-francês, Marcello Mastroianni para Manoel de Oliveira em A Viagem ao Princípio do Mundo (1997).

O princípio organizador de estes filmes é o da semelhança física: os actores são sósias aproximados dos realizadores e interpretam personagens onde eles se projectam, sem caírem, no entanto, no efeito narcísico, esquizóide ou vampírico, de João César Monteiro protagonizando Recordações da Casa Amarela (1989) e os seguintes A Comédia de Deus (1995) e As Bodas de Deus (1998) com esse personagem santo e poeta cuja sombra se encontrara antes, via Nosferatu em Que Farei com esta Espada? (1975) e que chegara a admitir projectar em Jorge Silva e Melo, então activo como actor no teatro, com grande êxito cómico no Karl Valentin de E não se pode exterminá-lo? (1979), que Solveig Nordlund filmou em série televisiva, e com quem César Monteiro fizera Silvestre (1981).

É assim de uma viagem ao princípio, do mundo ou do cinema, que o filme trata, própria de uma obra mais próxima de ser última, do que a primeira que aparentemente anuncia. É a primeira obra de Rui Simões subsidiada nos concursos para ficção, mas o realizador desde sempre tem mostrado como a separação é equívoca e acantonar o seu cinema anterior no género documental injustamente redutor. Mas há outras primeiras obras suas que se estruturam como núcleos da reflexão que este filme propõe: Desobediência, filme de escola feito em 1970, e principalmente Bom Povo Português sobre o período pós-revolucionário depois do sucesso, do mais didático e seguro de uma visão do mundo, que fora Deus Pátria Autoridade.

Viagem também aos princípios, políticos ou estéticos, por que se bateu. Ou lhe bateram, como a passos não deixa de lembrar, no sentido de uma imagem de marca que em determinada altura o impediu de filmar.

O cinema moldou todo o século XX, mas, ao caminhar quase em final do primeiro quartel do século seguinte, parece ter já perdido o fôlego ou pelo menos a confiança, acompanhando uma crise global que sucessivamente se tem expressado na economia, na saúde pública e na guerra permanente como resolução daquela outra que muitos anos se considerou fria.

Porque talvez todo o cinema tenha sido americano mesmo a contragosto, na sociedade do espectáculo, segundo o internacional situacionista Guy Debord que informou as leituras de Simão agora acolhendo como um bom pai, em ambiente doméstico, uma desobediência (1970) feita nas ruas da amargura (2008), ou a vertigem e as liberdades no "Portugal amanhecido", que o cineasta, ainda em potência, encontrou ao regressar, depois de (ou durante?) Abril, ao bom povo português (1980) cujos gestos e fragmentos registou e pontuam o filme de agora.

Eduardo Lourenço - de que Primeira Obra evoca a colaboração em Guerra ou Paz (2012), e fora um dos pilares do filme de Seixas Santos (1982) que a produtora do filme, Real Ficção, editou em DVD e difunde actualmente - em transcrição de notas de gravação de 2001, agora republicadas com correcções em Segundo Paraíso: Do Cinema como Ficção do Nosso Sobrenatural (ed. Gulbenkian, 2022) mostra a América como "continente futurante", com "o facto de a sua imagem se condensar miticamente numa arte, a famosa Sétima Arte", que "construiu uma imagem, produziu imagens participadas por quase todas as outras culturas do mundo, se não todas", da qual "o western fala - ou melhor mostra como realidade viva - uma América épica da gesta da conquista do Oeste", mas afinal "uma América outra, e não a filha de uma América...que não nasceu de si mesma ...porque filha de outro planeta chamado Europa", mas "vem de outro sítio para inventar uma nova criação, correspondente ao mito do Novo Mundo", e "na verdade, quereria estar na origem da Civilização, do próprio Mundo".

A démarche de Rui Simões (n. 1944) é consequentemente paralela de Steven Spielberg (n. 1946), no recente Os Fabelmans (2022). E o que os move não é o olhar de Narciso, apenas na aparência voltado para as suas próprias biografias, mas verdadeiramente o fascínio pelo cinema que os inventou, na flor da idade (Spielberg exibindo em sala o seu depoimento que precede o filme, e Simões filmando Michel que filma, numa câmara miniatura, Simão para o estudar em trabalho universitário). Eles são na realidade os filhos dos Lumière realistas que assustavam as novas plateias com um comboio quase capaz de as esmagar ou de Meliés que abria o campo à fantasia e à capacidade de sonhar. Na saturação audiovisual dos dias de hoje, são chamados literalmente a dar a cara, nos tempos confusos em que as narrativas cruzadas já obnubilam os traços antes seguros da realidade e exigem a presença mais pessoal que assegure a credibilidade do testemunho próprio. A exposição pessoal faz hoje parte da equação, mas o mundo precisa novamente de mais cinema. Para num ambiente agora "entardecido", que Rui Simões parece expor em fotografias nas suas paredes, o sonho ser ainda possível.

O cinema é artifício, manipulação aparentemente fácil como Michel mostra no computador a uma maravilhada Alice no país do cinema, o maior espectáculo do mundo (De Mille) para o mundo não se tornar apenas cinema onde o homem tranquilo (Ford mesmo quando parece irado na figura de Lynch questionando onde se enquadra a linha do horizonte na memória que Spielberg ainda pôde guardar) não possa abandonar o Álamo, forte da fronteira dos supostos heróis que depois de Reagan facilmente passam da película para a política, numa Europa que como diz Eduardo Lourenço a abrir Guerra ou Paz é "a história de uma guerra civil contínua".

"Só quero falar de cinema, porquê falar de outra coisa. Com o cinema falamos de tudo, chegamos a tudo", cita-se de Godard logo de entrada. Mas a realidade, onde as balas matam e o sangue não é um efeito de maquilhagem, é um caso sério de que todos na nossa singularidade temos de ser autores (uma ligeira transliteração permite em ambos particularizar o Simão ou quase inventar uma família de homens das fábulas).

É a soma de singularidades de um autor que sempre pensou o seu cinema ligado ao colectivo que Rui Simões quer filmar, nem sempre sabendo exactamente como. Por isso expõe-se numa aparente fragilidade que não é apenas a da consciência da finitude que a doença transporta, mas é a duma solidariedade generosa que excede o programa de um cinema partidarizado, continuando o seu anterior No País de Alice (2021), ligeiro na estrada, chegando ou saindo com agilidade de uma cena que se sabe mais ampla, para depois se poder espraiar no contágio dos espaços íntimos que a pandemia como paradigma, aliás, ameaça, em festas populares, onde a câmara segue segura o ritmo das músicas, ou refeições de família ou de amigos, com o empenho e a individualidade de uma pesca à linha, como uma das suas cenas parece sugerir no plano metafórico.

O filme abre com o regresso a Lisboa do luso-francês Michel de Oliveira (Zé Bernardino, numa interpretação fresca e comunicativa que segura todo o tom do filme), mais relaxado, e em certo sentido turístico, com certeza do que o do próprio cineasta quase cinquenta anos antes.

Os traços da história colonial, nossa e de outros, parecem conjugar-se numa convivialidade que se preza, as fronteiras do planeta parecendo menos estanques que as dos concelhos que a pandemia separa.

O motorista do Bangladesh (Abdul Seco) confessa: "gosto de finais felizes...vou pôr música para si".

A ameaça (covid, cancro, o que seja) existe, mas pode alegremente ser ignorada. A Amadora que viu nascer Susy (Ulé Baldé, confiante e determinada) é tanto uma colónia quanto a Guiné dos seus ancestrais, se atentarmos à dimensão estrutural, e o acesso à cultura e ao conhecimento mobiliza um activismo mais estratégico e profissional que emocional. O ambiente é intercultural e interclassista, homogeneizado, e apenas parece suspender-se a benefício do ritual religioso e erótico que a tourada proporciona.

"É uma paixão", diz o proprietário do restaurante local sob um cartaz que num efeito aparentemente anacrónico mistura África e o desafio da pulsão do touro.

Aí o homem parece transcender-se, a fingir que engana o medo ou dominando a dor e o sofrimento. Mas verdadeiramente todos parecem aceitar que faltam palavras a preencher vazios com aparência de irrecuperáveis (como as distâncias, silêncios, hesitações do encontro com o pai, excelente apontamento de Miguel Seabra, logo no início). Sonhos calados.

E o momento aparece como a porta de um futuro mais do que nas contas do passado. O cinema de Rui Simões também é desde o início um cinema de luto e superação. O bom povo português sabe. A radioterapia é como que um momento solitário que abre e fecha o filme.

Ora a primeira obra acaba por ser então o filme ou a tese de doutoramento sobre Cinéma Engagé ou as duas coisas, o que traz ao país este luso-descendente e directamente evoca a primeira obra feita na Bélgica por Simão no final da década de sessenta, do Maio 68 e por cá da queda, no sentido físico, e substituição, no sentido político, de Salazar.

É no fundo a promessa da viabilidade do inesperado em que este filme pretende actualizar o Bom Povo Português e Hannah Arendt bem traduzia no conceito de natalidade próprio da condição humana, a novidade sempre a chegar a cada nova geração.

Se o filme, mais expositivo na primeira meia hora, foge para a mão de documentário que Rui Simões tem mais treinada, com diálogos quase só informativos e sem procurar uma grande consistência dramática, ao jeito do que se tem designado por docuficção, acaba por encontrar um passo seguro na primeira sequência a preto e branco de Simão jovem (Mati Galey) admitido quase por acaso na escola de cinema em Bruxelas, enquanto a namorada é preterida, em diálogo com um professor (Jean-Marie Galey), num optimismo do melhor dos mundos possível, Voltaire contrariando Leibniz, e reerguendo o sonho particularmente com o grito da revolta estudantil numa estética forte de bailado e canto em choque com a instituição que supostamente o devia formar, prolongando-se depois habilmente no romance de Michel e Suzy na natureza ribatejana num encontro que nasce em várias configurações colectivas como as constelações observadas no firmamento.

Aí é a escolha situada, na "loja de regimes" que Abril parece abrir, ao sair do caos num confuso e insuportável zumbido sonoro, equivalente ao sol que encandeia à saída da caverna de Platão, justaposto ao discurso emblematicamente claro de Emídio Santana, bela imagem anarquista resgatada a um passado resistente, em que "se imagina a possibilidade de inventar a existência segundo a fantasia".

Rui Simões como que quebra o movimento pelo efeito estroboscópico que ele bem domina e que permite particularizar os momentos desfazendo a continuidade em que o cinema assenta. Mas pode dizer-se que, sem se deixar esmorecer, é "a realidade que ganha sempre" num flash que o cinema permite reconstruir como nos sonhos fellinianos do festival de cinema de Rifkin de Woody Allen (2020). "Uma pedra mais na grande aventura do cinema". Do "olho à mão" (como Vertov) mas agora mais a planificação-montagem (de Eisenstein). Assim pretende Rui Simões descer da teoria à conversa que a ideia de finitude torna urgente, vidente dos "corações disponíveis" num mundo paradoxalmente objectivado pelas trocas do dinheiro, na figura emblemática do cinema português que Isabel Ruth constitui e acaba por encerrar o filme, como uma Marlene Dietrich no "toque do mal" de Orson Welles. "Não penses muito nisso. Ela diz o mesmo a todos".

É do cinema que o filme fala. "Felizes para sempre, durante quanto tempo?". A sabedoria do luto que habitava já Bom Povo Português. "A revolução como uma história de amor". Trabalho de argumento ténue a prolongar-se no encadear de motivos musicais, com muita improvisação diz o genérico, como na festa à noite em que ele a vai buscar. "Não preciso de ser salva".  Bailado poético das actualidades que como um trovão interrompem uma noite de amor ao relento. Praça de touros, numa capela pequena de orações e velas, ou na lezíria longínqua.

"Chega uma altura na vida em que descobres que somos todos iguais". A sobrevivência e a angústia cósmica. "O filme todo a acontecer - primeira aula de edição".

O final é uma última ceia com bolo de aniversário que se supõe em final de filmagens, plano distante onde Rui Simões coincide em campo com António Fonseca como surgia já sentado num moliceiro na ria de Aveiro como se não tivesse interferência, em No País de Alice. O observador que se aceita observado, nesta forma de provocação pelo diálogo que o cinema pode voltar a ser.

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