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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Golpe De Sorte - Woody Allen

A SORTE GRANDE

António Roma Torres

 

Quando apresentou o seu 50º filme, Golpe de Sorte, em Setembro passado no Festival de Cinema de Veneza, ou umas semanas depois em Portugal, Woody Allen não se cansou de falar de sorte. "Tive muita sorte toda a minha vida". Frase algo surpreendente se se atentar à perseguição, algo injusta e mal fundamentada, de que tem sido vítima desde a separação há mais de 30 anos de Mia Farrow e o posterior casamento, 5 anos depois, com Soon-Yi Previn, filha adoptiva da actriz. Ele próprio repõe uma olímpica serenidade face à cultura de cancelamento que é mais uma atitude de legítima resistência do que um mecanismo de negação e fuga. "Acho que se alguém pode ser cancelado é a própria cultura que é cancelada. Tudo isto é uma tontice. Não penso nisso. Não sei o que significa ser cancelado. Ao longo dos anos tudo tem sido igual para mim. Eu faço os meus filmes. A minha rotina é a mesma. Eu escrevo o argumento, angario o dinheiro, faço o filme, edito, ele estreia. A diferença não é da cultura do cancelamento. A diferença é na forma como os filmes são apresentados. Aí é que houve uma grande mudança." (Variety.com, 3/9/2023).

Na realidade o título original, em francês que é a língua em que é falado, Coup de Chance, traduz-se correctamente por Golpe de Sorte, mas há aqui alguma subtileza a considerar e que ajuda a fazer uma leitura mais completa do próprio filme e obriga a reconhecê-lo como uma das obras maiores de Woody Allen e não uma simples variação irónica e inteligente do enorme talento de contar pequenas histórias, bem expresso aliás nos seus contos literários, editados ao longo do tempo. Por chance podemos entender não principalmente algo de bom que acontece por mero acaso, mas a possibilidade, a oportunidade que a própria vida humana nos oferece na sua quase infinita improbabilidade que nos dá existência.

Fanny (Lou de Laâge) e Alain (Niels Schneider) reconhecem logo nas cenas iniciais do filme, com muito maior bonomia aliás, que o amargo e irritado físico quântico, Boris Yellnikoff (Larry Davis), do anterior Tudo Pode Dar Certo (2009), que "são ínfimas as probabilidades de o único espermatozoide do teu pai, de entre milhares de milhões, encontrar o único óvulo que te criou", como as de semelhante acaso se repetir com o fortuito encontro numa tão grande cidade tantos anos depois. A vida humana é uma espécie de milagre que permanentemente introduz a novidade inesperada na constante repetição do cosmo como Hannah Arendt brilhantemente formulou no conceito de natalidade em A Condição Humana (1958).

Fanny e Alain foram colegas adolescentes no Liceu Francês de Nova Iorque e encontram-se por acaso no centro de Paris passada uma dezena de anos. Eles não tinham estado na mesma turma, conheciam-se de vista e ele apreciava nela a beleza e jovialidade, e ela nele a escrita de artigos no jornal da escola, mas nunca se tinham declarado. Os posteriores encontros desenvolvem um namoro escondido, capaz de revitalizar a rotina do sucesso mecânico de Fanny numa empresa de leilões e as hesitações da criação literária como escritor solitário de Alain, que leva Jean (Melville Poupaud), o marido de Fanny, agente duvidoso que proporciona aos ricos ficarem ainda mais ricos e não escolhe meios para atingir os seus fins como o demonstra um misterioso desaparecimento anterior de um antigo sócio, a tentar eliminar o rival.

E é neste ponto que o filme retoma o tema do crime perfeito que Woody Allen aflora com frequência em algumas suas obras desde Crimes e Escapadelas, e que parece muito subtilmente afirmar agora a radical impossibilidade do cancelamento como uma tentativa de condenação a uma morte cívica, e ao mesmo tempo a sua origem no ciúme total, agressivo e irracional, que a traição no amor pode despertar, sendo que apesar de tudo é o poder e não o amor que está em causa.

O poder (ou o seu simulacro) é a imagem de Jean perante a miniaturização do mundo num comboio eléctrico de brincar e os espectadores mais atentos não deixaram escapar a hipotética referência a idêntico brinquedo no contexto referido da tarde no Connecticut em que, numa visita à casa de campo de Mia Farrow já após a separação, lhe é imputada a sinistra acusação respeitante à filha adoptiva então com 7 anos, de que, no entanto, foi judicialmente ilibado.

A partir do momento em que é posto em marcha o plano de fazer desaparecer Alain o espectador passa a saber toda a sequência de factos que as personagens não conhecem na totalidade numa instância reflexiva desta parábola sobre o que pode acontecer a quem ousa tentar controlar todos os factores do destino que mesmo assim lhe pode ironicamente continuar adverso, essência da tragédia grega que habita a obra de Woody Allen desde Poderosa Afrodite até ao muito mais recente A Roda Gigante, mas aqui é dada numa versão saborosamente ligeira, ao mesmo tempo paralela do sentimento de omnipotência de Jean e da essência do próprio cinema, reflectida por Alain Resnais em O Meu Tio da América, filme que Woody Allen já subtilmente evocara em Sonho de Cassandra  e mais recentemente Spielberg nos transmite na interessante fábula que Os Fabelmans constitui.

Quando Alain desaparece literalmente sem deixar rasto, Fanny sente-se angustiada, confusa, e finalmente abandonada, em estado de choque. Mas rapidamente recupera num breve luto que parece poder deixar tudo esquecido num casamento renovado em festa e um súbito desejo de engravidar. Mas a sua mãe Camille (Valérie Lemercier), mais intrigada entre explicações esotéricas e aproximações em bom estilo de detective privado, acaba por colocar-se na mira do caçador de fim-de-semana que procura apanhar e ainda que o tiro seja afinal outro, o verdadeiro golpe de sorte está num manuscrito escondido que garante que nenhuma manifestação humana que alguma vez tenha existido possa alguma vez dar-se como totalmente apagada (e afinal a verdadeira prova para mãe e filha de que o desaparecimento de Alain não fora voluntário).

A narrativa do filme mostra como novos nascimentos são sempre possíveis e nunca a morte é totalmente absoluta, como Walter Benjamin formulou na sua terceira tese sobre o conceito de história que postula que nada do que alguma vez tenha acontecido pode ser dado como perdido para a história e legitima associar toda a citação ao valor de natalidade de uma segunda vez que fez Arendt considerá-lo, em Homens Para Tempos Sombrios (1968), um inusitado pescador de pérolas, observação muito útil nestes novos tempos de supostos cancelamentos e apologias do pensamento único.

Em 2018 publiquei Tudo O Que Sempre Quis Saber Sobre Psicodrama - Mas Nunca Ousou Perguntar a Woody Allen (ed. Afrontamento) onde percorro 51 filmes de que o considero autor, mas se corrigirmos as contas, excluindo os iniciais, Que Há de Novo Gatinha? e Casino Royale, de que foi co-argumentista e intérprete, e O Grande Conquistador, intérprete e autor da peça original, e O Testa de Ferro, apenas intérprete, e acrescentando os dois estreados entretanto (Um Dia de Chuva em Nova Iorque e Rifkin's Festival), ou seja limitando a autoria àqueles de que verdadeiramente foi o director, verificamos que conclui agora o seu quinquagésimo filme e aproximando-se do 88º aniversário, em 30 de Novembro. É natural que Woody Allen considere um fim à vista numa vida biológica ou pessoal que se sabe não ser eterna, mas não deixa de encontrar uma resposta clara e sabiamente paradoxal que tem repetido à exaustão, sabedor de não ser concedido a ninguém uma última palavra. "É natural que este seja o meu último filme. Mas também pode não ser." Aguardemos então.

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