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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Sol Do Futuro - Nanni Moretti

À PROCURA DE UM FIM

António Roma Torres

 

As comédias de Nanni Moretti, pelo menos a partir de Caro Diário, são paradoxalmente filmes de luto. Nesse caso foi o processo de luto que a doença de Hodking com que Moretti fora diagnosticado gerou provavelmente na vida dele e que ocupa um dos episódios do filme. Mas em Palombella Rossa, podemos agora identificar melhor, era já, anteriormente, o luto do comunismo, em perda como ideologia revolucionária da classe operária, que na geração anterior do cinema popular italiano e no ambiente político pós-Maio 68, entrara no paraíso pela mão de Elio Petri. Isso é aliás bem identificável no documentário A Coisa que Moretti dirigiu logo depois acompanhando no interior do PCI as discussões sobre a mudança de nome do partido, depois concretizada, que foi agora oportunamente exibido em sala e no pequeno ecrã, na RTP e no Filmin, a propósito da estreia de O Sol do Futuro. Mas parece lutar contra o luto - dir-se-ia que quer continuar a acreditar no sol do passado - como se tornou indelével na invectiva, em Abril, a Massimo D'Alema, líder do centro-esquerda, precisamente vindo das transformações do PCI, num debate na televisão na campanha eleitoral em que se virá a tornar primeiro-ministro, "diz uma coisa de esquerda!".

Por vezes Nanni Moretti ensaiou mesmo descolar da comédia, de forma bem sucedida em O Quarto do Filho, Palma de Ouro em Cannes, que viria a repetir com Minha mãe, mas com menos êxito junto do público no filme imediatamente anterior a O Sol do Futuro, Os Três Andares, também o luto de um filho, agora não pela morte mas por um conflito radical que afasta totalmente um pai e o filho.

Mas os processos narrativos mantinham alguma semelhança, num cinema que se quer popular, mas ao mesmo tempo pretende evidenciar, em função, muitas vezes o cineasta que se funde com o actor - mas não se pretende assumir na realidade como um processo brechtiano de distanciação. Outras vezes ele é o psicanalista, já em O Quarto do Filho, mas depois, em Temos Papa, chamado a tratar o papa Piccoli, em pânico após ter aceitado o resultado da votação dos cardeais em conclave, em que é despojado de vida própria, também um processo de luto numa como que morte anunciada.

Muito interessante é toda a cena inicial da pichagem num muro, pela calada da noite e numa aparente actividade clandestina, do título-slogan, O Sol do Futuro, para de repente tudo se iluminar numa cerimónia orquestrada por Ennio, director do jornal do PCI que acompanha, com um misto de orgulho e humildade, a inauguração da iluminação pública que a campanha política da organização local do partido conseguira fazer aprovar no bairro operário Antonio Gramsci, sendo que ele é afinal, percebemos depois, Silvio Orlando (que aliás ganhara o David di Donatello, num outro filme de Moretti, O Caimão), o actor-protagonista do filme que Giovanni (Nanni Moretti) está a dirigir. Mas a vontade de não perder ou enfastiar o espectador, que talvez tenha necessidade de uma bússola que lhe permita saber sempre, onde está a direita ou a esquerda, a realidade ou a fantasia, e assim por diante, com a clareza de um militante que não se atreve à falta de certezas de um qualquer pós-modernismo que passa por tibieza ou traição em quem a todo o momento está em combate.

E Nanni Moretti parte então em combate, com mais raiva ainda que o juiz também de ideias claras que ele protagonizara em Os Três Andares. Há, contudo, um toque felliniano que espreita constantemente, não apenas numa cena directa de A Doce Vida, ou no engarrafamento de trânsito a sugerir 8 e ½ em palco de uma encenação especialmente dramática do filme dentro do filme aqui até com alguma distanciação brechtiana, mas também no circo húngaro que a organização local do bairro operário trouxera a Roma na data exacta da invasão soviética de Budapeste em 1956, de seu nome Budavari aliás homónimo do jogador húngaro de polo aquática que choca com Michelle Apicella, o protagonista de Palombella Rossa e dos outros quatro filmes iniciais que Nanni Moretti interpreta, e lhe causa a amnésia pos-traumática, que nunca chega verdadeiramente a contaminar um final feérico à 8 e ½, fantasia que Moretti talvez não soubesse substituir em vez da manif militante de bandeiras vermelhas e um cartaz com o retrato de Trotsky (e, como única liberdade, os seus actores deste e de outros filmes).

Mas verdadeiramente é sobre como acabar, ou seja a escolha do final, da última cena, que todo o filme parece organizar-se em várias vertentes: seja o filme que Giovanni está a rodar e cuja produção francesa acaba por falir sendo substituída por um financiamento coreano, mais prático na sua gestão fria, e em que o aparente final suicida acaba por poder suspender-se de um iminente enforcamento; seja outros dois filmes que Giovanni idealiza, escrevendo ou preparando um guião, num rio simbólico de piscinas descontínuas de uma zona residencial, a partir de um romance americano de John Sheever, The Swimmer, que na realidade fora filmado por Frank Perry em Mergulho no Passado, remetendo as piscinas descontinuamente sólidas novamente para o polo aquático de Palombella, ou um contínuo de temas musicais românticos a estruturar-se no melodrama à la Gianni Morandi, cuja música aliás acompanhara um registo de promoção da chegada a Cannes de Moretti com o seu filme anterior; seja a irritante interferência com discussões sobre o método de improviso organizado de Cassavetes, ou a violência menos expeditiva e logo com as dificuldades do real de Kielowski, ou, em desespero final, a chamada não atendida por Scorsese, na rodagem do último plano de um outro filme aparentemente idiota, produzido em simultâneo por Paola (Margherita Buy), sua produtora e sua esposa, agora em divórcio que o surpreende como um argumento mal escrito a pedir um spin-off, que o salve.

Cabe dizer ainda que o filme que Giovanni está rodar é sobre outra crise dos comunistas italianos durante e imediatamente após a invasão soviética da Hungria em 1956 corporizada no dilema de um homem, alto quadro do partido, entre as movimentações das bases de quem se sente afectivamente próximo e a disciplina de um partido de combate a que se habituou a obedecer e a transmitir as ordens chegadas do antipático líder e responsável, no caso Palmiro Togliatti, em tempos de resistência. Mas reduzir a discussão do estalinismo internacionalista a uma suposta pureza do ideário trotskysta, ou até ignorar o anterior secretário-geral do PCI, Antonio Gramsci, de maior fidelidade aos conselhos operários como estrutura democrática comunista apesar da complacência tática com a estratégia mundial da III Internacional, ou remetê-lo apenas no nível de uma placa toponímica é quase tão simplista como os jovens actuais, que constituem a equipa de filmagens de Giovanni, se equivocam nos divertidos diálogos das reuniões preparatórias da sua equipa de filmagens: "Então, Ennio e Vera, nossos protagonistas, são dois membros do Partido Comunista..."; " Mas porque havia comunistas em Itália?"; " Como se havia comunistas em Itália? Havia um grande partido com dois milhões de membros..."; "Ah, então havia dois milhões de russos que vieram para Itália para serem comunistas!". Como se percebe há duas invasões russas que se confundem numa certa amnésia histórica, a dos tanques militares em Budapeste, e a das ideologias na democracia italiana no espaço ocidental em que a Democracia Cristã e o PCI se confrontavam como os dois grandes partidos que se opunham nas disputas eleitorais. Talvez paradoxalmente o horror da amnésia que parece dominar Nanni Moretti possa acabar por favorecer outras formas de amnésia e a verdade verdadeira, passe o pleonasmo, acabe por ser uma discussão infinita. Moretti não pretende mostrar alguma ambiguidade que tanto critica nas posições talvez frágeis da esquerda e não se conforma com qualquer espírito pos-moderno, mas a verdade é que no aspecto de certezas durante décadas o cinema não prescindia de deixar claro um último título durante a projecção que dizia simplesmente: The end.

No resto, fora da sala, é a vida e na realidade nenhuma palavra é a última.

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