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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Oppenheimer - Christopher Nolan

O QUE A LIBERDADE DE PENSAR PODE SIGNIFICAR

António Roma Torres

 

É possível que Oppenheimer venha a ser considerado a obra-prima que Christopher Nolan nos vinha prometendo desde o quase inicial Memento (2000), fundindo a narrativa menos linear com os complexos labirintos da mente, que logo se prolongam em variações mais alargadas do princípio da incerteza face à realidade do mundo externo à beira da catástrofe ou da salvação em Insónia (2002), A Origem (2010) e Interstellar (2014), com o pé em falso mais ou menos ilusionista de O Terceiro Passo (2006), entremeado com o truque de prestidigitação que foi a recriação de Gotham City, apontada na década anterior em Batman (1989) de Tim Burton e prolongada até Joker (2019) de Todd Phillips, nos sucessivos êxitos comerciais de um inteligente uso da banda desenhada, desde o pseudo-inaugural logo no título Batman - O Início (2005), aos posteriores O Cavaleiro das Trevas (2008) e O Cavaleiro das Trevas Renasce (2012), além dos filmes de Zack Snyder de que foi produtor executivo, Homem de Aço (2013), Batman v. Superman: O Despertar da Justiça (2016), e Liga da Justiça (2017) ou, em nova versão, Liga da Justiça de Zack Snyder (2021).

Mas a verdade é que Nolan vinha já procurando conciliar essa característica autoral com uma vontade de agir na conjuntura política europeia e ocidental, ele que nasceu em Londres, filho de um inglês e uma americana, e teve residência alternada nos dois países e dupla cidadania.

Em tempos de Brexit, resultante do referendo de Junho de 2016 apresentou Dunquerque (2017), como Ophenheimer sobre factos reais da guerra, a ombrear com o melhor Spielberg no género, O Resgate do Soldado Ryan (1998), ou com o peculiar Terrence Malick, A Barreira Invisível (1998), mostrando o isolamento insular na mundividência britânica e a responsabilidade de Churchill na inflexão da guerra a favor dos Aliados.

Quando surge a pandemia numa versão catastrófica da globalização, a coincidir aliás com a efectivação do Brexit, propôs-nos Tenet (2020), apesar de tudo fracassado na sua missão anunciada de resgatar o cinema em sala ofuscado pelo DVD e depois pelo streaming que o realizador explicitamente combate, no súbito declínio imposto pelo confinamento, mascarado no início numa cena de espectadores adormecidos numa sala de Kiev a lembrar o ataque checheno ao teatro Dubrovka de Moscovo em 2002, para logo se declarar que "há uma guerra fria como o gelo" e que "saber a sua verdadeira natureza é perdê-la".

Agora com mais de um ano de uma guerra, mal disfarçadamente regional, que "aqueceu", e pode aliás sobreaquecer, já que verdadeiramente não terminara no último quartel do século passado, retorna ao velho tema da guerra permanente, juntando a sua voz a um debate mais profundo em Oppenheimer, que, apesar do nome em título, é muito mais que o biopic do físico norte-americano que ficou conhecido como "o pai da bomba atómica" e a valorização psicológica dos dilemas morais associados aos caminhos da ciência que podem levar à destruição do planeta, nunca esquecida aliás na sua filmografia.

Na realidade, e muito embora jogue numa trepidação sonora e visual, no entanto expressiva do desassossego que esteticamente pretende transmitir, deve muito à fotografia de Hoyte Van Hoytema (já director de fotografia em Dunquerque, Tenet e Interstellar), à música de Ludwig Göranson e à montagem de Jennifer Lame (ambos também presentes em Tenet) e ao desenho e supervisão de som de Richard King (já oscarizado nesta categoria em O Cavaleiro das Trevas, A Origem e Dunquerque), apostando numa narrativa não linear que subtilmente descola da impressão de realidade do tradicional cinema americano para uma natureza dupla muito consistente com o tema científico e filosófico da descoberta das potencialidades e perigos da energia atómica.

A estrutura das duas linhas dramáticas, expostas desde início, acaba por resolver-se no anticlímax final, uma montagem paralela com dois episódios posteriores às deflagrações de Hiroshima e Nagasaki, sob o mote respectivamente das palavras centrais à manipulação da energia nuclear: cisão, em 1954, a cores, no final do período de perseguições McChartyista da primeira metade da década de 50, correspondente a uma revisão da consciência e das convicções de J. Robert Openheimer (Cillian Murphy) e das suas anteriores amizades comunistas na comunidade universitária de Berkeley, acentuando um uso subjectivo da câmara, com personagens literalmente despidos ou observantes reflexivos presentes na cena exterior, respondendo em audições em consequência do protesto contra a retirada da credencial de acesso a segredos militares que lhe fora comunicada pelo então presidente da Comissão de Energia Atómica, Lewis L. Strauss (Robert Downey Jr.); e fusão, em 1959, a preto e branco, em que o mesmo Strauss responde perante uma comissão do Senado após a sua nomeação como Secretário de Estado do Comércio interino da administração republicana Eisenhower, que põe fim à sua carreira política recusando a confirmação tendo em conta o seu comportamento na desacreditação de Oppenheimer.

Esse artifício, narrativo mais que dramático, permite ao filme um retrato eficaz, também porque complexo, nos limites do pensamento entre a genialidade de novas hipóteses e das suas confirmações matemáticas, experimentais e finalmente na prática que chega ao homem comum, e o campo do comportamento relacional, com mais intuição para a rede de interacções que paciência para os cálculos mais complexos de que possa encarregar os colaboradores, na liderança de um grupo ou na ambiguidade afectiva e familiar, a raiar a psicose como em Uma Mente Brilhante (2001), de Ron Howard, sobre o matemático John Nash, que ganhou o prémio Nobel pela aplicação da teoria dos jogos nas decisões económicas, oscarizado mas menos consistente particularmente na elaboração estética e narrativa, ou o isolamento comunicacional em O Jogo da Imitação (2014), de Morten Tyldum, também oscar de melhor argumento em torno da decifração de códigos secretos durante a guerra por Alan Turing, matemático percursor da computação teórica.

Oppenheimer enfatiza no entanto a forte liderança e sentido de missão do matemático genial no grupo de físicos englobados no Projecto Manhathan por ele dirigido e as suas aproximações e disputas com outros dois personagens significativos: Leslie Groves (Matt Damon), general engenheiro responsável militar pela instalação de Los Alamos que o considera indispensável ao plano e arrisca autorizar as suas credenciais de segurança; e Edward Teller (Benny Safdie), subordinado rival interessado no desenvolvimento duma, ainda mais potente, bomba de hidrogénio, que Oppenheimer embora discordando acaba por permitir que continue na sua equipa.

Num mundo subitamente tão reducionista em função da renovada actualidade da ameaça nuclear, Oppenheimer realça a permeabilidade ao pensamento divergente de que o protagonista dá mostras e de certa maneira garante que novas portas se podem abrir ao conhecimento, aceitando as contradições dos riscos e das convicções assumidas, como no curioso diálogo com Groves sobre a probabilidade "quase zero" de explosão do planeta na reacção em cadeia que a deflagração do primeiro teste Trinity pode gerar, mas também tentando opor-se ao uso acrítico do poder nuclear para vantagens estratégicas agora numa guerra permanente voltada contra o anterior aliado conjuntural soviético, chegado já tarde à derrota dos nazis que afinal não estavam próximos de o alcançar e exagerado o risco da não rendição nipónica

Mais que vivenciar o dilema moral ou a culpa que irritaram o presidente Truman (Gary Oldman), Oppenheimer mantém por disciplina mental a entropia dentro do sistema, aceitando submeter-se de boa-fé às regras do comité que o interroga, ao contrário da forma mais contundente que a mulher Kitty (Emily Blunt), ex-activista comunista, agora dissidente, repetidamente lhe sugere, ou afastando-se antes, da amante Jean Tatlock (Florence Pugh) também comunista em rota suicida. 

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