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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Bom Povo Português - Rui Simões (1980) E Oxalá - António-Pedro Vasconcelos ((1980)


O LUTO DE ABRIL NO CINEMA PORTUGUÊS

A. Roma Torres, A Grande Ilusão, nº0, Verão/1984, pgs. 10-11

 

Uma década depois da "Revolução dos Cravos" o cinema português está de novo em crise. A crise é, como anteriormente, estrutural já que do ponto de vista criativo alcançou uma indiscutível  maturidade.

O que caracteriza o cinema português depois de Abril, mas a tendência vinha já de dois anos antes com os primeiros filmes da "fornada" da Gulbenkian no segundo fôlego do "cinema novo", é sem dúvida uma atitude metacinematográfica, alicerçada na ausência de uma verdadeira memória cinematográfica, consequente à desertificação da produção portuguesa depois dos anos 40, e de uma indústria do cinema capaz de limitaros critérios de produção. Nesse contexto cada filme português tendia a ser também uma proposta sobre o próprio cinema inscrita explicitamente na sua construção. Isso torna esta década do cinema português particularmente interessante do ponto de vista de uma teoria do cinema.

Naturalmente que estas circunstância tiveram também o efeito de excitar o narcisismo excessivo dos directores portugueses, o que de alguma forma no entanto constituiu um antídoto ao militantismo primário e ingénuo que logo a seguir ao "25 de Abri" se baptizou como "cinema de intervenção".

Censurado ao nível do Estado que era já então a principal entidade produtora e quase sem ter sabido organizar-se a um nível clandestino, o cinema português saíu em Abril para a rua como quem quebra o silêncio, no entusiasmo imediato de dar a palavra ao povo. Esse objectivo aparentemente fácil exigia no entanto uma elaboração para além do imediato registo de imagens e sons. A maior parte do dito "cinema de intervenção" esbarrou na ingénua magia da entrevista, sem perceber os limites dos próprios níveis de consciência dos intervenientes e da necessidade de produzir um sentido, onde quase não se distingue a ficção do documentário mas surge antes a reflexão estética como instrumento de revelação ou decifração de uma realidade opaca e não ilusoriamente transparente. Havia aí que distinguir o processo informativo do processo psico-afectivo e verificar com Edgar Morin que "tudo numa entrevista depende de uma interacção pesquisador-pesquisa, pequeno campo fechado onde se vão confrontar ou associar gigantescas forças sociais, psicológicas e afectivas" (A entrevista nas ciências sociais, no rádio e na televisão, Communications nº7, 1966).

Se o "cinema de intervenção" se processou num ambiente de euforia pouco consistente, logicamente o retorno do 25 de Novembrro trouxe um "cinema de lamentação", que decorre em certa medida da mesma estética, e cujos exemplos extremos se podiam talvez situar em Meu nome é... de Fernando Matos Silva (Cinequipa) e A Confederação de Luís Galvão Teles (Cinequanon). As palavras de ordem radicais, os gestos heróicos individuais, a resistência utópica, vêm finalmente testemunhar uma dificuldade de sobreviver na nova realidade política e social, a que corresponde um discurso em certa medida masoquista.

Para além das necessárias reavaliações políticas do processo português há na esquerda portuguesa uma questão de ânimo. Mais que defender uma ideologia há que recobrar o ânimo e isso só é possível através de um processo de luto das ilusões e esperanças perdidas. Porque, pelo menos no imaginário colectivo houve algo que se perdeu.

A criação artística e particularmente o cinema, com toda a sua força capaz de cativar as emoções, tem condições para fazer essa espécie de terapia.

Numa perspectiva psicodinâmica, pelo menos depois do clássico Luto e Melancolia de Freud, o luto deixa de ser considerado como uma atenuação da dor mas é antes um processo activo do indivíduo face às situações de perda, de uma pessoa querida, mas também por exemplo de um ideal.

Bom Povo Português de Rui Simões é ao nível do cinema de montagem um bom exemplo deste tipo de elaboração. Fugindo às imagens gastas deste tempo histórico, mesmo às imagens facilmente míticas, ou reinscrevendo-as, por exemplo, numa alteração do ritmo ou do contexto sonoro, Rui Simões vai reviver um processo em certa medida doloroso. A morte ocupa em Bom Povo Português um lugar central a partir do qual se pode procurar todo o sentido do filme. Bom Povo Português começa com imagens de um parto que se identifica com o 25 de Abril para terminar um ciclo vital, não propriamente na morte, mas sim no ritual do luto, que serve de elipse do 25 de Novembro. "O que é a morte?" interroga-se a professora perante as crianças em que o futuro se antevê, pouco depois das imagens de um Otelo silencioso a assistir pela televisão à tomada de posse de Eanes, ou de um personagem (Augusto de Figueiredo) protagonizando um discurso colonialista e conservador, também irredutível perante a revolução histórica, incapaz de um mesmo modo de um processo de luto e optando por uma negação da realidade a que o "não, não e não" da canção de Maria de Lurdes Resende dá a dimensão caricata.

A citação de Platão no início de Bom Povo Português não é, como facilmente se pretendeu, a defesa do gradualismo e do paternalismo mas talvez seja, em termos da luz e das penumbras de que é feito o próprio cinema, a enunciação de um povo que, longo tempo prisioneiro da caverna, ao sair encandeado não viu nada mas será ainda capaz de fixar o próprio sol.

Oxalá de António-Pedro Vasconcelos é ao nível da ficção um outro exemplo de uma semelhante postura cultural. O filme vai de alguma forma contar a revolução como uma história de amor(es). No prólogo e no epílogo a política assume-se no discurso explícito do filme a apontar um possível nível de leitura, para no intervalo se desdobrar em retratos e capítulos num itinerário de amores e separações que nos monólogos de Adelaide João e de Teresa Madruga parecem funcionar como uma metáfora também de perdas de uma revolução sonhada. Como Rui Simões, António-Pedro Vasconcelos pela voz do protagonista também não quer "pactuar com o fracasso e chorar-lhe no ombro" e por isso descobre que "perder um amor não é trágico, o que é trágico é descobrir que isso não é trágico". Contraposto a um personagem, aliás curiosamente cineasta, que o filme nos mostra apenas pelo que dele é dito e que, abandonado pela mulher e por um Otelo que já não exioste mais, se suicida, o exílio simplesmente interior ou real do protagonista surge como uma aceitação da realidade. "Então a revolução em Portugal já acabou?", perguntam-lhe em Paris - "parece que sim, é a vida", responde o protagonista nos diálogos finais. Oxalá é um filme sobre as perdas no amor como na revolução, mostrando como a elaboração dessas perdas é uma condição da sobrevivência, mesmo da sobrevivência do sonho. 

Para voltar a Freud pode dizer-se que o indivíduo "obrigado por assim dizer a decidir se quer partilhar o destino do objecto perdido, considerando o conjunto de satisfações narcísicas que existem em continuar vivo, se resolve a quebrar o seu laço com o objecto aniquilado". É sobre a questão de como continuar vivo que Bom Povo Português e Oxalá propõem importantes reflexões.

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