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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Cinco Dias, Cinco Noites, Afirma Pereira E Sinais De Fogo

FRONTEIRAS INDETERMINADAS

 

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 20

 

De certa maneira SEM SOMBRA DE PECADO de José Fonseca e Costa pode ser considerado o modelo de referência. Em todos os casos trata-se de reconstituições históricas, onde a magreza dos orçamentos se procura disfarçar no predomínio dos interiores e do trabalho de figurinista e de cenografia, tendo por pano de fundo o período da ascenção do salazarismo, mas não se constituindo directamente em filmes políticos, antes optando por uma certaprimazia concedida ao romanesco e à ficção.

 

A inspiração em textos literários (nesse caso um conto de David Mourão Ferreira) também condiciona a narrativa a algum constrangimento expressivo, onde o respeito pelo autor original acentua a vertente do trabalho de ilustração, para o qual a preferência pela recriação dos interiores já em certa medida conduzia.

 

Curiosamente dos filmes agora surgidos, em que se podia descortinar uma génese semelhante, é o de José Fonseca e Costa aquele que parece ter encontrado um maior espaço de liberdade criativa e isto apesar de CINCO DIAS, CINCO NOITES se basear na novela homónima de Manuel Tiago, aliás Álvaro Cunhal, e isso lhe poder conferir todo o peso da expressão de um homem  político determinante, referência marcante como Secretário Geral do Partido Comunista Português na nossa História contemporânea.

 

Pode dizer-se talvez que o peso literário de Antonio Tabucchi (AFIRMA PEREIRA) ou de Jorge de Sena (SINAIS DE FOGO) terá acabado por se fazer sentir mais nas respectivas adaptações cinematográficas. Creio, porém, que em última análise a diferença principal está na opção que presidiu a cada um dos filmes.

 

AFIRMA PEREIRA é uma adaptação cinematográfica dirigida pelo italiano Roberto Faenza. É verdade que Tabucchi é igualmente italiano mas o seu convívio com a cultura portuguesa é sabidamente bem mais profundo. A crise de Pereira que vai constatando a teia repressiva gradualmente visível, até tomar uma decisão, pode lêr-se no contexto histórico do Portugal dos anos trinta, mas reflecte igualmente o olhar actual sobra a crise europeia, e até a italiana das grandes mudanças da aparência política e do vazio criado na Itália dos juízes por uma espécie de súbito desmoronamento duma realidade política que como nos países do Leste europeu de certa maneira pareceria bem mais sólida. Este ponto da consciência política individual que consiste em avaliar a cada momento para onde vamos é de alguma maneira o cerne de AFIRMA PEREIRA, com bastante engenho projectada no jovem a quem Pereira encomenda notícias necrológicas antecipadas, para poder estar prevenido, na redacção da página cultural de que é responsável no jornal onde trabalha, na eventualidade da morte de alguns vultos da Cultura. De certa forma essas mortes antecipadas constituem uma metáfora da repressão, mas também da resistência que se lhe pode opor, e principalmente do sentido da vida e da história que sempre permanece em aberto, apesar do carácter por assim dizer definitivo da morte. Nesse seu trabalho meticuloso do qual só lentamente parece despertar. Pereira, interpretado por Marcello Mastroianni curiosamente parece próximo do Santana de Raul Solnado em A BALADA DA PRAIA DOS CÃES ainda de Fonseca e Costa e também de inspiração na literatura, nesse caso de José Cardoso Pires.

 

Embora Tabucchi, até na sua referência a Fernando Pessoa, seja de certa maneira um escritor do sentido múltiplo, Roberto Faenza pareceu menos interessado nas interrogações do que numa minimamente eficaz transposição que respeitasse as regras, aliás pouco ambiciosas, do conceito actual de co-produção europeia. Isto quer dizer que falta ao filme alma, o que visivelmente se traduz numa certa italianização do retrato do regime português, patente por exemplo no tratamento dado no filme à remontagem de cenas de A REVOLUÇÃO DE MAIO de António Lopes Ribeiro, como se se tivesse tratado de um documentário de propaganda e não de uma ficção evidentemente também de propaganda. Nem é a manipulação de uma outra obra que está em jogo, embora de legitimidade duvidosa, mas principalmente dum certo preconceito que trata descuidadamente uma realidade portuguesa, a que por outro lado o filme deliberadamente se fixa, por exemplo não reenviando para o questionamento de realidades vivas, também aí fazendo necrologia e não necessariamente história. E, como o gosto pelo paradoxo de Tabucchi poderia ter permitido ver, de certa maneira todas as necrologias são antecipadas.

 

SINAIS DE FOGO é evidentemente um filme onde o cineasta, Luis Filipe Rocha, se identifica a um outro nível com o autor literário. Luis Filipe Rocha que, note-se, no início de carreira esteve bem próximo de Fonseca e Costa (teve mesmo um papel em O RECADO), já antes havia feito sobre Jorge de Sena o quase desconhecido SINAIS DE VIDA. Por isso acabou por ser ele a levar ao cinema o extraordinário romance de Jorge de Sena, que já tinha interessado Eduardo Geada e António da Cunha Telles. E a primeira grande opção seria sem dúvida a da dimensão e uma necessária simplificação narrativa que seria quase imposta.

 

Luis Filipe Rocha consegue uma razoável verosimilhança, difícil quando o cinema português aposta claramente na narratividade e não apenas na expressividade, e tem sem dúvida em Diogo Infante o intérprete que segura bem um personagem complexo. No entanto Luis Filipe Rocha não parece, como Jorge de Sena no qual se pressente a reminiscência autobiográfica, capaz de verdadeiramente se interessar por um tempo de incertezas (o da adolescência, do despertar da sexualidade e do confronto com orientações diversas, e também do despertar de uma consciência política, com os reflexos da Guerra Civil de Espanha nos veraneantes do país vizinho na Figueira da Foz e o questionamento das opções que passam pelo compromisso pessoal, pela reconsideração da origem de classe e pelo alinhamento em organizações cuja lógica muitas vezes é difícil de determinar entre o voluntarismo e a utopia e o pragmatismo que se pode tomar num poder pessoal também arbitrário).

 

O romance de Jorge de Sena caracteriza o trabalho de construção da identidade num jovem a sair da adolescência e num tempo de mudança. Luis Filipe Rocha parece ter feito um filme a partir de um ponto de vista da maturidade e com a certeza de uma visão histórica sobre o passado. Por isso quase não passa no filme a turbulência e a nebulosidade em que se parece mover Jorge, o protagonista de SINAIS DE FOGO, estudante de engenharia em férias na praia apanhado no meio de situações radicalmente novas.

 

Finalmente CINCO DIAS, CINCO NOITES de José Fonseca e Costa pode constituir no debate das propostas estéticas de filmes que têm um ponto de partida semelhante em certa medida uma resposta.

 

Em primeiro lugar note-se que este «salto» da fronteira clandestino de André (Paulo Pires) remete de uma forma circular para o primeiro filme de Fonseca e Costa, O RECADO, e o regresso de um outro clandestino Francisco. Por outro lado Lambaça (Vítor Norte) em CINCO DIAS, CINCO NOITES não deixa de evocar esse excelente «Mal-de-vivre» (José Viana) de O RECADO, pelo aparente conformismo que não anula uma saudável e politicamente digna marginalidade, a que se alia um eficaz sentido da sobrevivência. É como se se tratasse de um ciclo, eventualmente balizado pelo desenvolvimentismo marcelista questionado no filme inicial e o período final cavaquista em que surge o último filme (e uma via sempre interessante na obra de Fonseca e Costa é a sinalização que frequentemente deixa inscrita na sua obra das fases da história recente que testemunha).

 

O que sobressai em CINCO DIAS, CINCO NOITES e, aliás, corresponde ao sentido da novela não é como na literatura do «realismo socialista» a mensagem social, os personagens exemplares ou a intenção edificante. Há mais dúvidas que certezas sem que isso anule ou diminua as convicções do autor ou dos personagens. Só que o ângulo de visão é mais amplo.

 

O filme interessa-se pelos personagens face aos outros que os rodeiam, dando por esse lado todo o sentido social da existência, caro evidentemente à ideologia de Manuel Tiago. Mas ao mesmo tempo todos os personagens, mesmo se excessivamente tipificados, guardam uma espécie de mistério, algo que os deixa apreender imediatamente e ao mesmo tempo os distancia, mostrando como um objectivo a cumprir ou uma determinada acção os pode aproximar enquanto permanece algo que não se funcionaliza completamente a esse nível. Por isso Cunhal mostrava a Clara Ferreira Alves em entrevista no «Expresso - Revista» de 20/4/96, a propósito da arte «a atracção do mistério e do dificilmente decifrável».

 

CINCO DIAS, CINCO NOITES é um filme de várias fronteiras e o mérito de Fonseca e Costa foi o de, sem trair a obra original, bem pelo contrário, evitar uma espécie de concretização ilustrativa que é sempre uma tentação da objectividade cinematográfica, permitindo identificar uma realidade histórica determinada mas ampliando-a nos referentes do real capazes de lhe multiplicar o sentido (assim, por exemplo, a recriação das pronúncias não sendo realista em relação a nenhuma região particular, situa o filme num falar português rural, sincrético, equivalente, aliás, da não identificação dos lugares geográficos na novela).

 

André ao longo do filme segue Lambaça, sem saber muito bem até que ponto pode confiar, e presumindo um maior sentido da responsabilidade, e Fonseca e Costa não vai pela via fácil do «suspense» antes leva o espectador por um itinerário reiterativo em que a fronteira é algo que já não tem uma realidade visível, que como que resulta duma iniciação ou duma conversão, não já num momento exacto mas numa continuidade indefinida, traduzida na exclamação «já passámos» como resposta a mais uma pergunta céptica. Há qualquer coisa na construção do filme que reenvia para outras fronteiras, da superação individual, do diálogo e da compreensão do outro, da mudança histórica e da sinalização da consciência individual e colectiva.

 

Por isso paradoxalmente talvez tanto Lambaça como André tenham razão nas frases que contrapõem, respectivamente «o mundo há-de ser sempre igual, aconteça o que acontecer» e «as coisas hão-de mudar, aconteça o que acontecer» - a questão não está na aparente irredutibilidade de cada posição, mas na necessidade de dar um sentido (plano obviamente subjectivo), aconteça o que acontecer (plano objectivo).

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