A ESCADA DA VIDA
O espectador habituado ao rigor do olhar de Manoel de Oliveira, ou seja, ao cuidado que põe na composição da imagem, na forma como constrói visualmente os seus filmes, ou à valorização que dá aos textos, ficará talvez um pouco desorientado depois de ver A Caixa. Por outro lado, quem não conhece o universo de Manoel de Oliveira pode talvez encontrar aqui uma via de acesso mais fácil através de um certo número de tipos populares que em alguns momentos Manoel de Oliveira parece aproximar da época da comédia cinematográfica dos anos 30-40, de A Canção de Lisboa, por exemplo, em que Oliveira tinha participado como actor.
O filme desenrola-se num espaço limitado, que é o das escadinhas de São Cristóvão, na Mouraria, em Lisboa. Ao contrário de outros filmes, como Benilde, por exemplo, e apesar de se basear numa peça de teatro de Prista Monteiro, Manoel de Oliveira preferiu um cenário natural ao palco e de certo modo isso prolonga-se no modelo de representação que propôs aos actores. Logo nas cenas iniciais A Caixa começa de forma brilhante, percorrendo este espaço através dos passos de bêbado de um guarda-nocturno, quando o dia amanhece. Mas depois vem um outro ritmo e as soluções cinematográficas dão o seguimento esperado a este retrato de um micromundo que concentra um pouco de toda a experiência humana.
A caixa de esmolas do cego (Luís Miguel Cintra), com uma ironia muito do agrado de Manoel de Oliveira, vai ser o ponto fulcral, não da caridade, mas da inveja. E o que afinal está em jogo é uma espécie de versão oficial, em papel azul e reconhecida no notário, sejam os atestados que aparentemente dão acesso a posse de uma caixa, afinal última propriedade dos desapropriados, ou a "história" que a nora do cego (Beatriz Batarda) acaba por adquirir.
Ser "ceguinho", como diz Luís Miguel Cintra, acaba por ser um estatuto que já tem pouco de objectivo. A vizinha (Glícinea Quartim) é "probe", como dizem na linguagem popular, algo exagerada, a que o filme recorre, mas não deve ter uma "caixa", porque não é cega. O segundo cego (Duarte d'Almeida, alias, Bénard da Costa) certamente não vê, mas não é "ceguinho", porque sabe cantar.
A Caixa acaba por se centrar na pose que afinal dá credibilidade à tipificação de cada personagem. Num verdadeiro teatro do mundo a cada um cabe apenas a oportunidade de representar determinados papéis.
O epílogo do filme é a cena mais forte e aquela que verdadeiramente determina este pequeno filme, se o considerarmos depois de uma obra da dimensão de Vale Abraão. Mas ainda aí é um retrato de mulher que Manoel de Oliveira constrói com uma complexidade semelhante. Beatriz Batarda tem uma interpretação notável, quer na sofrida e hostil primeira parte, quer na final expressão de santidade. Enquanto o taberneiro (Rui de Carvalho) e a vendedeira (Isabel Ruth) a consideram "santa", a sua virtude surge-nos paredes meias com a maior perversidade, num mundo que tem sido muitas vezes associado a Buñuel e que provavelmente, se alguma articulação tem com o universo do cineasta espanhol, será pelo lado de Viridiana.
O que parece perturbar o espectador afinal será a falta de unidade que é pouco frequente no cinema de Manoel de Oliveira e que passa principalmente pelos desempenhos dos actores. Entre Acto da Primavera e Os Canibais, Manoel de Oliveira trabalhou os actores basicamente ao nível da voz, do cantochão popular, do auto sagrado à ópera. Depois disso, de certa maneira, Manoel de Oliveira deu mais liberdade aos seus actores, correndo com eles cada vez um maior risco, dos diálogos dos soldados em Non, a recordar os miúdos de Aniki-Bobó, do diálogo dostoievskiano, brilhantemente interpretado por Maria de Medeiros e Miguel Guilherme em A Divina Comédia, até à extraordinária revelação de Leonor Silveira em Vale Abraão, ou agora Beatriz Batarda em A Caixa, embora de forma mais discreta (a excepção terá sido, por causa do tema e da própria ligação do texto com a casa que remeteria para A Visita ou Memórias e Confissões, o filme sobre Camilo O Dia do Desespero). No entanto, em A Caixa há uma conflitualidade de registos que Manoel de Oliveira aparentemente não chega a resolver: o de Beatriz Batarda, que constrói a personagem com alma, com intuição, com pequenos olhares ou gestos peculiares, e o de Luís Miguel Cintra enfático, histriónico, a roçar o caricatural, particularmente pela pronúncia popular que está nos antípodas do registo de vozes de Acto da Primavera, por exemplo. Naturalmente, a expectativa voltar-se-á para o trabalho que Manoel de Oliveira virá a fazer com actores vedetas internacionais nos filmes imediatamente posteriores.
A Caixa guarda ainda algumas ligações com determinados filmes de Manoel de Oliveira, particularmente naquilo em que se identifica a postura do próprio realizador enquanto autor perante o mundo de personagens primários, ou sem uma grande riqueza de discurso, que desta vez, através da peça de Prista Monteiro decidiu filmar. A pintora "naïf" (Júlia Buisel), até na entrada em cena até iniciar o seu trabalho artístico, remeterá para O Pintor e a Cidade, o guitarrista (mestre Duarte Costa) fará pensar na Marta João Pires de A Divina Comédia, e o retrato borratado no final da refrega dirá alguma coisa da distância da arte à vida e das impressões significativas, do lugar e do tempo, da vida, afinal, que acabam por ficar na obra, eventualmente sem o controlo do autor, ou para além dele. Mas a expressão artística, mais do que documentar a realidade, terá que ver com uma postura religiosa, uma forma de oração, como se dizia em "A Divina Comédia, e aqui se repete no diálogo que precede a Avé Maria de Schubert. O próprio taberneiro, que Rui de Carvalho interpreta de forma excelente, é uma personagem que no cinema de Oliveira pode remeter para o lojista (Nascimento Fernandes) de Aniki-Bobó ou o director da casa de alienados (Ruy Furtado) de A Divina Comédia, personagens globais de um outro nível que é, por assim dizer, o lugar de Deus ("a minha religião é a taberna", como diz o tasqueiro).
A Caixa mais do que um cinema de ideias é um cinema de tipos, mais ou menos bem definidos, e que na constante invenção de Oliveira, por certo sem entusiasmar, se pressente, contudo, como um ponto de passagem de um autor que parece inesgotável. Por isso, uma vez mais, merece a nossa atenção.
A. Roma Torres, Jornal de Notícias, 19/12/1994
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