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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Caixa - Manoel De Oliveira (1993)

A ESCADA DA VIDA

 

O espectador habitu­ado ao rigor do olhar de Manoel de Oliveira, ou seja, ao cuidado que põe na composição da imagem, na forma como constrói visualmente os seus filmes, ou à valorização que dá aos textos, ficará tal­vez um pouco desorientado depois de ver A Caixa. Por outro lado, quem não conhece o universo de Manoel de Oliveira pode talvez encontrar aqui uma via de acesso mais fácil através de um certo núme­ro de tipos populares que em alguns momentos Manoel de Oliveira pare­ce aproximar da época da comédia cinematográfica dos anos 30-40, de A Canção de Lisboa, por exemplo, em que Oliveira tinha participado como actor.

 

O filme desenrola-se num espaço limitado, que é o das escadinhas de São Cristóvão, na Mouraria, em Lis­boa. Ao contrário de outros filmes, como Benilde, por exemplo, e apesar de se basear numa peça de teatro de Prista Monteiro, Manoel de Oliveira preferiu um cenário na­tural ao palco e de certo modo isso prolonga-se no modelo de represen­tação que propôs aos actores. Logo nas cenas iniciais A Caixa começa de forma brilhante, percorrendo este espaço através dos passos de bêbado de um guarda-nocturno, quando o dia amanhece. Mas depois vem um outro ritmo e as soluções ci­nematográficas dão o seguimento esperado a este retrato de um micromundo que concentra um pouco de toda a experiência humana.

 

A caixa de esmolas do cego (Luís Miguel Cintra), com uma ironia mu­ito do agrado de Manoel de Olivei­ra, vai ser o ponto fulcral, não da ca­ridade, mas da inveja. E o que afinal está em jogo é uma espécie de ver­são oficial, em papel azul e reconhe­cida no notário, sejam os atestados que aparentemente dão acesso a posse de uma caixa, afinal última propriedade dos desapropriados, ou a "história" que a nora do cego (Be­atriz Batarda) acaba por adquirir.

 

Ser "ceguinho", como diz Luís Mi­guel Cintra, acaba por ser um esta­tuto que já tem pouco de objectivo. A vizinha (Glícinea Quartim) é "probe", como dizem na linguagem po­pular, algo exagerada, a que o filme recorre, mas não deve ter uma "cai­xa", porque não é cega. O segundo cego (Duarte d'Almeida, alias, Bénard da Costa) certamente não vê, mas não é "ceguinho", porque sabe cantar.

 

A Caixa acaba por se centrar na pose que afinal dá credibilidade à ti­pificação de cada personagem. Num verdadeiro teatro do mundo a cada um cabe apenas a oportunidade de representar determinados papéis.

O epílogo do filme é a cena mais forte e aquela que verdadeiramente determi­na este pequeno filme, se o considerarmos depois de uma obra da dimensão de Vale Abraão. Mas ainda aí é um retrato de mulher que Manoel de Oliveira constrói com uma complexidade se­melhante. Beatriz Batarda tem uma interpretação notável, quer na sofri­da e hostil primeira parte, quer na final expressão de santidade. En­quanto o taberneiro (Rui de Carva­lho) e a vendedeira (Isabel Ruth) a consideram "santa", a sua virtude surge-nos paredes meias com a mai­or perversidade, num mundo que tem sido muitas vezes associado a Buñuel e que provavelmente, se al­guma articulação tem com o univer­so do cineasta espanhol, será pelo lado de Viridiana.

 

O que parece perturbar o especta­dor afinal será a falta de unidade que é pouco frequente no cinema de Manoel de Oliveira e que passa principalmente pelos desempenhos dos actores. Entre Acto da Pri­mavera e Os Canibais, Manoel de Oliveira trabalhou os actores basica­mente ao nível da voz, do cantochão popular, do auto sagrado à ópera. Depois disso, de certa maneira, Ma­noel de Oliveira deu mais li­berdade aos seus actores, correndo com eles cada vez um maior risco, dos diálogos dos soldados em Non, a recordar os miúdos de Aniki-Bobó, do diálogo dostoievskiano, brilhantemente interpreta­do por Maria de Medeiros e Miguel Guilherme em A Divina Comédia, até à extraordinária revelação de Leonor Silveira em Vale Abraão, ou agora Beatriz Batarda em A Caixa, embora de forma mais dis­creta (a excepção terá sido, por cau­sa do tema e da própria ligação do texto com a casa que remeteria para A Visita ou Memórias e Confissões, o filme sobre Camilo O Dia do Desespero). No entanto, em A Caixa há uma conflitualidade de re­gistos que Manoel de Oliveira apa­rentemente não chega a resolver: o de Beatriz Batarda, que constrói a personagem com alma, com intui­ção, com pequenos olhares ou ges­tos peculiares, e o de Luís Miguel Cintra enfático, histriónico, a roçar o caricatural, particularmente pela pronúncia popular que está nos antí­podas do registo de vozes de Acto da Primavera, por exemplo. Natu­ralmente, a expectativa voltar-se-á para o trabalho que Manoel de Oli­veira virá a fazer com actores vedetas internacionais nos filmes imediatamente posteriores.

 

A Caixa guarda ainda algumas ligações com determinados filmes de Manoel de Oliveira, particularmente naqui­lo em que se identifica a postura do próprio realizador enquan­to autor perante o mundo de perso­nagens primários, ou sem uma gran­de riqueza de discurso, que desta vez, através da peça de Prista Mon­teiro decidiu filmar. A pintora "naïf" (Júlia Buisel), até na entrada em cena até iniciar o seu trabalho artísti­co, remeterá para O Pintor e a Cida­de, o guitarrista (mestre Duarte Costa) fará pensar na Marta João Pi­res de A Divina Comédia, e o re­trato borratado no final da refrega dirá alguma coisa da distância da arte à vida e das impressões signifi­cativas, do lugar e do tempo, da vida, afinal, que acabam por ficar na obra, eventualmente sem o controlo do autor, ou para além dele. Mas a ex­pressão artística, mais do que docu­mentar a realidade, terá que ver com uma postura religiosa, uma forma de oração, como se dizia em "A Divina Comédia, e aqui se repete no diálo­go que precede a Avé Maria de Schubert. O próprio taberneiro, que Rui de Carvalho interpreta de forma excelente, é uma personagem que no cinema de Oliveira pode remeter para o lojista (Nascimento Fernan­des) de Aniki-Bobó ou o director da casa de alienados (Ruy Furtado) de A Divina Comédia, personagens globais de um outro nível que é, por assim dizer, o lugar de Deus ("a minha religião é a taberna", como diz o tasqueiro). 

A Caixa mais do que um cinema de ideias é um cinema de tipos, mais ou menos bem definidos, e que na constante invenção de Oliveira, por certo sem entusiasmar, se pressente, contudo, como um ponto de passa­gem de um autor que parece inesgo­tável. Por isso, uma vez mais, mere­ce a nossa atenção.

 

A. Roma Torres, Jornal de Notícias, 19/12/1994

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