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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Carta - Manoel De Oliveira (1999)

Encontrar o amor na impossibilidade

 

O tema dos amores não consumados tem sido recorrente na filmografia de Manoel de Oliveira. "A carta", adaptação de "A princesa de Cléves", um romance do século XVII, de Mme. De La Fayette, é um regresso a um período da sua carreira que encontrou em "Amor de perdição" a sua expressão mais significativa. Aliás a adaptação do romance de Camilo Castelo Branco constituiu o verdadeiro ponto de partida para o fulgor da carreira tardia do mais talentoso cineasta português, embora de certa maneira Oliveira sempre o associou com os precedentes "O passado e o presente" e "Benilde ou a virgem-mãe" e o posterior "Francisca" no que designou por uma "tetralogia dos amores funestos".

A adaptação de "A princesa de Cléves", aliás, começou a esboçar-se quando, durante a rodagem de "Amor de perdição", Jacques Parsi, habitual colaborador de Oliveira, e seu tradutor para a língua francesa, lhe sugeriu a sua leitura, presumivelmente pela evidente ligação temática. E registe-se que "Vale Abraão", filme mais recente, bastante ligado também à cultura francesa na inspiração em "Madame Bovary" de Flaubert, é a um outro nível um percurso amoroso frustrado, não pela renúncia mas na evidente insatisfação de uma entrega inconsequente.

Se se pode falar de regresso às suas preocupações essenciais, não se pode falar de repetição. Como em todos os autores maiores há na obra de Manoel de Oliveira a permanência das linhas fundamentais mas uma constante reinvenção criativa. Se em "Amor de perdição", por exemplo, Oliveira seguia o texto de Camilo Castelo Branco como se se tratasse de uma leitura pública, distanciando-se, pela fidelidade ao texto e à sua estrutura, da digestão popular do melodrama, agora na adaptação de "A carta" a opção de Oliveira é completamente distinta.

O romance de Mme. de La Fayette não é apenas encenado nos dias de hoje, como o personagem-actor se torna Pedro Abrunhosa, cantor "rock" português, assim designado no filme, e não, como no original, o duque de Nemours. Mas o aspecto principal reside no próprio processo de adaptação descrito num número recente da revista "Cahiers du Cinéma" (nº 538, Setembro de 1999). Manoel de Oliveira pediu a Jacques Parsi que escrevesse dois resumos da história do romance, um com uma página por capítulo e outro concentrando apenas numa página toda a história. A partir daí, Oliveira deixou o livro de lado e reconstruiu uma história onde a realidade do livro dá lugar à estrutura do próprio filme.

O processo é portanto o oposto do de "Amor de perdição", mas o que Oliveira procura é, se quisermos, uma forma de expressão complementar.

Aparentemente o que Oliveira nos mostra é que o amor é verdadeiramente impossível de representar, apenas se conhecendo, na linguagem de Agustina em "Francisca", pelo rasto.

Mas em "A carta" parece que este processo vai um pouco mais longe, afirmando-se a sua impossibilidade de se concretizar não apenas na representação, mas na própria existência. Para os personagens de Oliveira o amor é uma potencialidade, que se persegue, que se sonha, pela qual se sofre, mas que verdadeiramente não existe. O seu mistério está precisamente em se perder quando se alcança, e por assim dizer ser algo que impulsiona sempre para um outro lugar.

É assim que a princesa de Cléves (Chiara Mastroiani) recusará o amor de Pedro Abrunhosa por fidelidade ao marido, a quem apesar de tudo o deixa perceber, e depois da morte do marido continuará a recusar-se porque, como confessa à religiosa sua amiga (Leonor Silveira), era a impossibilidade do amor que alimentava o próprio amor. Diga-se que nos diálogos das duas é evidente não apenas a excelente interpretação de Chiara Mastroiani, mas, uma vez mais, a perfeita sintonia de Leonor Silveira com o cineasta que a revelou.

O lugar da fantasia é bem visível no diálogo quando se afirma a certeza da correspondência do amor de Pedro Abrunhosa a partir do seu olhar, quando o personagem precisamente percorre todo o filme com os olhos ocultos por trás dos óculos de sol que constituem a "imagem de marca" do cantor (ele próprio movendo-se num terreno incerto entre a existência e a ficção, mesmo no referente exterior ao filme que é o próprio cantor, introduzido no filme através dos espectáculos de palco, usados com maestria surpreendente por Manoel de Oliveira). Note-se, aliás, que a primeira cena se passa nos bastidores e precede precisamente a entrada em palco, numa sinalização que remete para muitos dos filmes anteriores de Manoel Oliveira.

Oliveira já não tenta afirmar a realidade da ficção através de uma situação existencial, de que ela seria testemunho (a ficção de "Amor de perdição", como expressão do tempo de cela de Camilo Castelo Branco), mas, de certa maneira, a realidade poderia constituir uma dissolução de uma realidade de um outro nível que é o da fantasia, e que é essencial à existência humana. Há um interessante, mas não completamente exposto, paralelo entre a renúncia da princesa de Cléves em "A carta" e os personagens de "Os imortais", o primeiro segmento do anterior filme de Oliveira, "Inquietude", que parecem querer alcançar a imortalidade precisamente no suicídio.

Em "A carta" talvez Oliveira tenha conseguido dar mais um passo nessa difícil pesquisa de uma fronteira entre a fantasia e a realidade, ou entre a vida e a morte, numa zona de ambiguidade e de paradoxal certeza que se delineava na presença da agonia do alferes em "Non".

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 19/10/1999

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