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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Divina Comédia - Manoel De Oliveira (1991)

UMA PARTE DA VERDADE

 

 

A DIVINA COMÉ­DIA, de Manoel de Oli­veira, é um filme  de uma inteligência abso­luta, apesar da aparente simplicidade com que joga e articula entre si textos universalmente consagrados da Bíblia a Crlme e Castigo e Os Irmãos Karamazov, de Dostolevski, de Nietzche ao nosso José Régio, que tanta importância tem na obra do Manoel de Ollveira, que do dramaturgo poeta adaptara já Benllde ou a Virgem Mãe e O Meu Caso. Aliás, desde já devemos assinalar que A DIVINA COMÉDIA tem uma evidente familiaridade com o anterior O Passado e o Presente e com esses dois filmes inspirados em Régio, o que é visível não apenas na sinalização de um espaço de referência (palacete/palco), mas nos próprios processos estéticos, no uso do câmara nomeadamente. 

A DIVINA COMÉDIA, mercê do artifício da "Casa de alienados", que, aliás, en passant, salta por ventura também do O Antlcristo, de Nietzche, que inspirou por outro lado o papel do Filósofo — estas extensões surpreendentes tornam alguns passos de A DIVINA COMÉDIA particularmente brilhantes, como no diálogo entre Cristo e Adão, para o qual se deslocam algumas referências bíblicas que na realidade diziam respeito a Lázaro e a suas irmãs, personagens também significativas deste texto dramático de Manoel de Oli­veira —, constitui uma espécie de debate de algumas poslções fundamentais, no que poderíamos chamar de uma visão do Mundo. Aliás, os personagens ("alienados") de Manoel de Oliveira por assim dizor loucos na sua própria razão, sâo obviamente parciais, como por inerência da própria naturoza humana, cada um obedecendo à lógica  do próprio discurso que tipifica, um pouco como no final ao Farenheit 451, de François Truffaut e Ray Bradbury, em que cada personagem resistente decorava um livro clássico passando a ser conhcido por esse nome.

Aliás, verdadeiramente, A DIVINA COMÉDIA é uma obra de resistência cultural, daí. porventura, o mal estar que provoca e a pregulça, que se estendeu infelizmente a uma boa parte da crítica portuguesa, de fazer um esforço suflciente para entender, para lá das modas de uma cultura massificada.

Precisamente porque lida com a parcialidade das personagens que recria e prolongando um sentido de objectividade que orienta Manoel de Olivoíra na sua pesqulsa documental, testemunha, mesmo quando lida com outros tempos, outros lugares e outras referências. Oliveira procura uma solução estética que realmente dê a melhor solução estétlca que realmente dê a melhor expressâo às questões que o filme pretende colocar. Embora de uma manelra diferente, em A DIVINA COMÉDIA, com a câmara fixa e a atenção a alguns enquadramentos diríamos prévios á postura que neles determinada personagem vem encontrar. Manoel de Oliveira continua se quisermos, uma reflexão estética sobre o espaço off, quo  fica para além do ponto da vista — parcial — que a câmara nos pode oferecer. Em O Passado o Presente, quase de uma forma antagónica, a câmara fazia ousados movlmentos enquanto a voz dos personagens se situava off, em Benilde a câmara, frequentemente dava atençáo aos personagons que escutavam uma acção que se passava off, em Le Soulier de Satin a câmara também fixa apenas numa cena figurava o  contracampo, em O Meu Caso, o ponto de vista da câmara era também frontal e a cada "repetição" apenas a óptica utilizada modificava slgnificatívamente o enquadramento, sem esquecer o off que era a própria voz de Deus no episódio de Job.

De uma forma que tem alguns paralelos com as porsonagens do O Passado e o Presente, A DIVINA COMÉDIA organiza-se em oposições frequentemente duais remetendo para todo esse trabalho original e de invostigação estética que Oliveira vem desenvolvendo sobre o campo-contracampo que constitui um elemento clássico da linguagem cinematográfica. Adão e Eva/Santa Teresa, o Filósofo o o Profeta, Sónia e Rasholnikov, Aliocha e Ivan sâo exemplos de uma oposição quase impossível de resolver, mesmo quando estâo condenados a aproximarem-se de uma forma complementar. Por outro lado Cristo, Lázaro e as irmãs, aproximam-se de um ponto de vista mais radical que de qualquer modo partilham com o Direclor — mas, significativamente Cristo é silenciado pelos enfermeiros protectores da ordem, Lázaro é mudo, a irmã Maria exprime-se quase unicamente através da música, e o Director, que se associa, triangulando, presidindo ao diálogo de Aliocha e Ivan (com a «lenda do grande  inquisidor» de Os Irmãos Karamazov como referência do ponto de enunciação dos discursos absolutos), acaba por se enforcar, parecendo remeter a luci­dez para os discursos parciais apesar da sua aparente loucura. 

Aliás será interessante reparar melhor na importância capital da cena de Ivan e Aliocha na presença do Dlrector. Por um lado, ela parece constituír um ponto de desequilíbrio  dramático.  Ivan é um personagem que vem de fora (numas dessas extensões hábeis de Oliveira, remetendo para o texto de Dostoievski) mas ele próprio pretende ser admitido na "casa de alienados", embora o seu "lema" tenha ainda um nível menos profundo de "incorporação" (ele lê um exercício escrito que fizera). Nessa cena o personagem é interpretado pelo próprio Manoel de Oliveira, em ho­menagem a Ruy Furtado, que desempenha o papel nas outras cenas e que morrera quando o filme não estava ainda concluído. Se quisermos, o discurso  do director pode ser identificado ao do  autor,  e num outro plano ao de Deus, ou seja, de um ponto de vista off, que se situa do outro lado da morte o que justificará aliás, o título de A DIVINA COMÉDIA. lsso explica talvez o suicídio do dlroctor com o doloroso plano da própria morte, a um nível de representação interpretada ainda por Ruy Furta­do. Oliveira, como em filmes anteriores, toca, de algum modo, o infilmável, se quisermos na substâncla íntima da noção de ressurreição, que no filme se  figura também no personagem de Lázaro que se prolonga da cena necrópslca do José Au guslo com o coração morto da amada em Francisca, do olhar por trás das ligaduras sobre a agonia do alferes de Non, e a dirigir-se provavolmonto para o fim trágico de Camilo em O Dia do Desespero, filme que Manoel de Olivelra está agora a começar a rodar.

A vida é precisamente a incerteza dilemática da cada um dos personagens de A DIVINA COMÉDIA, que se resolve na fé, no compromisso, na incorporação a que se liga cada um dos textos. De certa maneira. a dlrocção do actores (ou para sermos mais claros, a sua própria escolha e a margom de liberdade que lhes é concedida) expressa isso mesmo, podendo dizor-se quo Ollveira percorreu um longo ciclo do O Acto da Primavera a Os Canibais, onde trabalhou de forma oxtraordinárla a muslcalidado das palavras e um outro sentido que não o do texto, passando pela inintelegibilidade de uma das "repetições" de O Meu Caso e pela "ópera" de Os Canibais, para agora em Non e A DIVINA COMÉDIA regressar a uma expressâo mais natural, que retoma até a dicção, por exemplo, das crianças de Anlki-Bóbó. Nesse aspecto, e apesar da dificuldade do texto A DIVINA COMEDIA beneficia de um leque excelente de interpretações, com realce para Maria de Medeiros (Sónia), Miguel Guilherme (Rasholnikov), Mário Viegas (filósofo) e Luís Miguol Cintra (profeta). Neste contexto o trabalho, ao nível da múslca, não deixa de ser significativo. Enquanto no ciclo anterior até Os Canibais, Oliveira recorreu à inspiração musical de João Paes valorizando um clima fantástico que, de certa forma "comenta" o universo de Olivelra, em Non a música do espanhol Alejandro Masso está mais próxima dos"standards" impresslonistas e em A DIVINA COMÉDIA funciona de uma forma interlor à acção, na personagem de Maria (Maria João Pires), quase permanentemente ao piano e inspirando um diálogo excelente entre o filósofo e o profeta, precisamente sobre o dilema da arte entre a sensualldade do corpo e o sopro do espírito.

A DIVINA COMÉDIA é um belíssimo filme de um dos mais importantes cineastas do nosso tempo. Atenção portugueses! 

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 19/10/1991

 

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