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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Divina Comédia - Manoel De Oliveira (1991)

A PARTE E O TODO

 

A Divina Comédia, Manoel de Oliveira, Portugal, 1991

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 13

 

A atitude de Manoel de Oliveira face aos textos que convoca em A DIVINA COMÉDIA é do mesmo tipo da experimentada em AMOR DE PERDIÇÃO ou O MEU CASO: dar corpo aos textos, incorporá-los, o que no plano dos conceitos de corpo e alma poderá ser um equivalente estético da ressurreição, chamada também ao filme, quanto mais não seja, pela personagem de Lázaro.

Os «alienados» são-no precisamente porque são parciais, loucos do seu próprio discurso, como os resistentes do final de FAHRENHEIT 451 de François Truffaut. E a temática de Manoel de Oliveira também é provavelmente a da resistência.

Oportunamente Manoel de Oliveira prossegue uma pertinente reflexão estética sobre o contracampo e o espaço «off». Isso é coerente com o ponto de vista parcial que a câmara nos pode oferecer, numa oposição de personagens que remonta já a O PASSADO E O PRESENTE. Como nos movimentos de câmara de O PASSADO E O PRESENTE a atenção dos enquadramentos aos personagens que ouvem ou observam em BENILDE, no campo / contra-campo repetido de FRANCISCA, no campo frontal de LE SOULIER DE SATIN, nos diferentes enquadramentos ópticos das repetições de O MEU CASO, e nas cenas nocturnas do jardim em OS CANIBAIS, Manoel de Oliveira joga com enquadramentos que não seguem linearmente o «raccord» do olhar, e onde o personagem vai ocupar o lugar vago de um enquadramento determinado, como Luís Miguel Cintra atrás de Mário Viegas enquanto a acção se fixa, no espaço «off», no piano de Maria João Pires.

Mas o filme de Manoel de Oliveira é na realidade um divina comédia e por isso pretende enquadrar a totalidade talvez prolongando o olhar sobre a agonia do alferes Cabrita em NON. O director do hospício (Ruy Furtado) é supostamente o lugar da totalidade (compreensão) - é ele que assiste ao sonho de Rashkolnikov de Crime e Castigo; é ele que, significativamente preside à leitura da «lenda do Grande Inquisidor» de Dostoievski, texto que, Oliveira aborda uma vez mais o tema da morte, já presente no longínquo projecto de Angélica {Alguns projectos não realizados e outros textos, ed. Cinemateca Portuguesa) e portanto bem longe de qualquer pretensão testamentária. O director, guardião dessa metáfora do mundo que é a casa de alienados, acaba por se enforcar, e a morte do actor Ruy Furtado durante a rodagem acabou por ser superada por Manoel de Oliveira no próprio cerne do infilmável e da representação como equivalente estético da ressurreição. A morte representada de Ruy Furtado sucede no filme à substituição de Ruy Furtado, morto, pelo próprio Manoel de Oliveira no papel do director na cena de Aliocha - homenagem ao actor mas também significativo elemento de leitura do estatuto de autor como criador, se quisermos quase num plano divino. E A DIVINA COMÉDIA é precisamente um filme em que Manoel de Oliveira propõe um discurso sobre a arte no diálogo do Filósofo e do Profeta, e na ausência de discurso de Marta que se exprime principalmente pela música, pela arte (nesse sentido num plano de totalidade). O entendimento exige de certa maneira a parcialidade, a incompletude, e essa é a louca lucidez dos personagens de Oliveira, a sua condição de sobrevivência. A fusão, a completude, tem qualquer coisa de suicidário, eventualmente a prolongar-se no próximo filme de Oliveira, O DIA DO DESESPERO. Ou então exprimir-se-á como forma, na arte, que, no entanto, acabará por ser percebida de maneira dilemática, entre a sensualidade do corpo (o discurso do Filósofo) e o sopro do espírito (o discurso do Profeta).

No recurso a alguns meios expressivos A DIVINA COMÉDIA confirma a evolução posterior a OS CANIBAIS: as interpretações procuram uma expressão mais natural, menos presa à musicalidade da voz, trabalhada de O ACTO DA PRIMAVERA ao registo operático de OS CANIBAIS, sendo significativa a chamada de Mário Viegas que protagoniza de certa maneira a chamada arte de dizer, ou mesmo de Maria de Medeiros e Miguel Guilherme; a música abandona o clima fantástico da anterior colaboração de João Paes e situa-se agora ao nível da própria acção dramática e não do comentário exterior. Trata-se ainda, se quisermos, duma espécie de incorporação, noção central à própria estética de Oliveira e à sua peculiar dialéctica do corpo e da alma, sabido já da Agustina de Fanny Owen que da alma só se pode registar o rasto.

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