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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A ESTRANHA COMÉDIA DA VIDA - ROBERTO ANDÒ

QUANDO O TEATRO É A PRÓPRIA VIDA

António Roma Torres

 

A morte infiltra-se em A Estranha Comédia da Vida por todos os lados. No início é o protagonista, Toni Servillo no papel de Luigi Pirandello, que organiza um funeral de luxo à sua velha ama, morta na pobreza. Mais tarde é o grupo de teatro amador, dirigido pelos dois cangalheiros, que se esmera nos ensaios de uma sessão espírita na tentativa de contacto com um morto. Adiante a morte súbita de uma abadessa, igualmente anciã, com uma nova volta ao imaginativo argumento. E tudo com uma segurança milimétrica de quem sabe o que quer fazer e como o fazer. Pode até dizer-se que Roberto Andò sai-se bem de uma espécie de quadratura do círculo, desafiando Pirandello no seu próprio terreno, mas não descurando o sentido popular da comédia simples, de uma dupla de cómicos, Salvatore Ficarra e Valentino Pincone, com largo sucesso em Itália, mas desconhecida do público português, excepto por uma pequena participação e não como dupla em Baarìa: A Porta do Vento de Giuseppe Tornatore e a possibilidade actual de ver em streaming na Netflix a nova série Que grande embrulhada!. Inteligentemente um crítico literário italiano, Stefano Jossa, chamou-lhe meta-metateatro.

O filme, cujo título italiano se deveria ter traduzido por A Estranheza, resulta num argumento extremamente bem desenvolvido, premiado justamente com o David di Donatello, considerado o oscar italiano nessa categoria, que permite manter o espectador sempre interessado, e ao mesmo tempo vai jogando em diferentes níveis de complexidade. E a estranheza não é conseguir manter esse jogo persistentemente por quase duas horas, sem perdas de ritmo ou pontos mortos, mas é, no plano da própria acção do filme, um estado de alma, como diz a velha ama, regressada em sonhos ou eventualmente como espírito.

Essa como que tristeza que Toni Servillo consegue colocar com toda a maestria na interpretação, depois de belos papéis em filmes do próprio Roberto Andò (Políticos não se confessam e Viva a Liberdade), e de Paolo Sorrentino (Sílvio e os Outros, Il Divo, e principalmente A Grande Beleza) ou Mario Martone (O Rei do Riso), é o momento de atitude reflexiva ou a aparente falta de inspiração que muitas vezes precede a criação artística.

E o facto, talvez o único realmente verdadeiro, é como se diz no filme, que só pelo curso do desempenho se vai saber se é um drama ou uma comédia.

Daí a real estranheza do título português que foi escolhido, talvez por razões comerciais afinal capazes de funcionar ao contrário. O filme constitui a comemoração de um centenário. Foi em 1923 que Seis Personagens à Procura de um Autor, a mais emblemática peça de Pirandello, voltou ao palco depois de um estrondoso fiasco na estreia dois anos antes, e tudo culminaria na atribuição do Prémio Nobel em 1934.

O que Roberto Andò propõe é uma espécie de variações sobre o mesmo tema. Personagens, muitas, a funcionarem num hábil jogo de espelhos, por vezes deformantes, em busca do tal autor que acaba por não ser encontrado. Ou talvez até nem mesmo exista.

O que é quase genial é a completa articulação da comédia popular, tipo grupo teatral amador, em Portugal associado a Pai Tirano de António Lopes Ribeiro, e o filme filosófico em que tudo se pode tomar como metáfora, a lembrar, para nos situarmos no melhor período do cinema italiano, o Ensaio de Orquestra de Federico Fellini, e tudo isto com um apreciável domínio de ofício na direcção de fotografia e na cenografia, na linha por exemplo do imediatamente anterior na carreira de Servillo, O Rei do Riso, biopic do actor cómico popular da mesma época, Eduardo Scarpetta.

Isso é visível particularmente numa longa sequência extraordinariamente coreografada nos movimentos de cena e de câmara, no espectáculo de estreia do grupo amador, a que o dramaturgo vai assistir, e que se começa subtilmente a desorganizar pela própria vida fora de cena dos artistas. Ou será que isso tudo é também teatro? Ou não passa do olhar crítico e distanciado de Pirandello?

Aliás a sequência rima com uma outra posterior, da estreia de Seis Personagens a que os cómicos amadores vão assistir como convidados, e que mais adequadamente se desenrola em tom de música de câmara, para se indecidir se tal convite realmente existiu, precisamente em situação inversa à da sequência anterior onde os efeitos sonoros colocados em palco simulavam por seu turno a música concreta. 

E as rememorações cinematográficas serão também mais que muitas, de F for Fake de Orson Welles ao muito mais central Rossellini em Onde Está a Liberdade? com o magnífico Totó.

Repare-se como o próprio argumento, inteligentemente trabalhado, inclui alternativas de percurso que afinal não são completamente excluídas, deixando afinal conviver os diferentes planos, mas sem prejuízo da clareza que acabe por hostilizar a boa-fé do espectador, um pouco como na literatura, e também na cultura italiana, se pode encontrar em Se Um Viajante numa Noite de Inverno de Italo Calvino.

Apesar destas evidentes ambições, o filme foi um sucesso de bilheteira na exibição em sala em Itália, mas provavelmente entre nós ficará rapidamente remetido ao streaming numa batalha permanente de invasão do dispositivo cinematográfico, já que é também uma co-produção Prime Video.

E isto coloca, noutro plano, em discussão o próprio cinema, até como evolução posterior ao teatro. A opção estética de Roberto Andò é puramente convencional, num certo academismo de ambiente visual, e até principalmente de carpintaria de découpage, ou paradoxalmente é uma atitude de resistência a uma cultura que massifica ou tritura os "conteúdos" num fast food onde se assemelham todos os sabores?

Ao misturar um trio de actores como Servillo, Ficarra e Pincone, ou o espectáculo popular e a pretensão cultural, Roberto Andò, para continuar a metáfora culinária, correu o risco de talhar a mayonnaise. Cabe ao espectador obviamente provar e decidir. Mas isso talvez apenas caiba ao espectador da sala, porque o do pequeno ecrã, por maior ou menor que seja, e possa ser disponibilizado em qualquer lugar e a qualquer hora, apenas estará a provar algo que definitivamente não é o cinema. Ou que, pelo menos, só a memória de sala, se ainda houver, o permite reconstituir.

E aí voltamos aos rituais de luto que preenchem a parte inicial do filme, e realmente nunca o largam. Mas eles existem realmente para celebrar a vida e não a morte. Não também a morte do cinema.

E no final, mas não menos importante, a dedicatória à memória de Leonardo Sciascia, um romancista a que o cinema italiano político das décadas de 1960 a 1980 ficou muito a dever, por exemplo em filmes como Cadáveres Incómodos de Francesco Rosi ou Todo Modo de Elio Petri, mas também um político, comunista até 1977, a diferentes níveis, do autárquico ao europeu, e que admirava simultaneamente Graham Greene e Dürrenmatt, o primeiro pela presença da graça e o segundo pela sua negação, "por mais paradoxal que possa parecer". Esse cinema na época foi criticado com razão pelas estéticas dos novos cinemas emergentes, como ingénuo e politicamente ineficaz, por acreditar que o conteúdo poderia passar incólume na trituradora do meio de comunicação, onde na velha formulação de Marshall McLuhan afinal "o meio é a mensagem".

Talvez hoje, numa sociedade mais complexa, onde todas as mensagens parecem anular-se, o cinema possa ser o lugar onde o paradoxo, a que a cultura ocidental habitualmente é avessa, possa ser reabilitado, e isso tenha o valor de resistência, para sobrevivência do homem polidimensional. Roberto Andò precisamente com essa dedicatória distancia-se do cinema de fácil digestão, mas cuida que uma cozinha mais sofisticada não acabe por ser tóxica. E isso continua a reconhecer-se como a dimensão estética.

É muito interessante que essa viagem reponha na ordem do dia o teatro de Luigi Pirandello, no mesmo ano em que Paolo Taviani, agora a solo, apresentou Leonora Addio, ainda um regresso ao dramaturgo italiano a que nem faltavam também os rituais funerários.

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