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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Metamorfose Dos Pássaros - Catarina Vasconcelos (2020)

ESPELHOS MÁGICOS

António Roma Torres 


A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos é a primeira longa metragem de um novo valor do sempre surpreendente cinema português, como foi reconhecido em vários festivais de cinema internacionais, guiando-nos para uma poética dos espelhos e para um léxico onde a palavra mãe, por exemplo, tem diferentes sonoridades em línguas diferentes.

A Metamorfose dos Pássaros não é um documentário mais sobre memórias de família que se apresente simplesmente de uma forma confessional, à deriva na expressão pessoal dos sentimentos, como tem acontecido com alguns outros recentes filmes portugueses.

Cada plano é estudado de forma cuidada num caminho austero, que não descansa no bonito, mas se desenvolve, fazendo jus ao título, numa constante metamorfose com grande criatividade e que ganha em ser lida à luz de Kluge ou, antes dele, Oliveira, também ele perito em espelhos mágicos, como sugere um título da fase final da sua filmografia.

A Metamorfose dos Pássaros é um filme sobre o mar e sobre a saudade, coincidindo com muito do cinema português que tenho vindo a chamar lusíada. O seu registo pode filiar-se em Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, Rita Azevedo Gomes ou Pedro Costa, colocando o texto na origem do seu labor estético. A banda de som e a banda de imagem seguem dois caminhos paralelos, a primeira guiada pelo texto polifónico, dialógico, representado a várias vozes, e que mereceria autonomamente ser publicado em livro, e a segunda por imagens com um rigor de construção que ganha uma lógica própria de comentário ao texto, num plano ensaístico, filosófico, por vezes metafísico, mas não necessariamente religioso. Numa entrevista ao Ípsilon do Público (8/10/2021) Catarina Vasconcelos diz que o texto foi escrito depois, mas verdadeiramente não é ele que comenta as imagens previamente gravadas porque de algum modo preexistia, na medida em que reconstrói as cartas trocadas entre a avó Beatriz e o avô marinheiro, ausente, Henrique, textos queimados a pedido de Henrique antes da sua morte por fidelidade aos limites do que fora a vida do casal, que é de certa maneira a demolição do tempo e da intervenção humana aplicada a textos.

Repare-se já no final do filme em duas conjugações excelentes do texto e da imagem que de alguma forma o desdiz, ou rediz. No texto Catarina Vasconcelos diz "quando mostrei o guião ao meu pai ele disse-me: as coisas não foram bem assim" e a imagem mostra Jacinto calado, uma resma de papéis nas mãos, levando o espectador a perguntar (pensar) como então as coisas "foram bem". No fim a banda de imagem é o ecrã negro onde se sobrepõe o texto, legendado, de um momento esse real já antes referido e gravado em vinil, na banda de som, que a família enviara ao outro pai, ausente no mar, na geração anterior.  

É um filme também sobre o processo de emancipação da adolescência e das comunidades, que tem também o seu quanto de luto e de dor. É muito curiosa a sucessão de selos dos anos cinquenta das colónias portuguesas de África e dos novos países independentes circunvizinhos culminando na revista Flama com a morte de Salazar na capa, mas refletindo em off numa transição subtil para a entrada de Jacinto e dos irmãos na universade e das novas preocupações na família.

Por outro lado o filme transmite uma visão da vida humana que surge na natureza como um rasgão de imprevisibilidade, para situarmos eventualmente as reflexões sobre o sobressalto da natalidade e mortalidade do ser humano e o contínuo da eternidade da natureza e do cosmos de Hannah Arendt em A Condição Humana (da própria história da evolução do conhecimento humano sobre as migrações das aves que dá o título ao filme até a magnífica imagem das plantas expandindo-se numa casa abandonada pela morte do ser humano, portanto histórico que as cuidava). 

Com a sua formação e experiência em artes plásticas Catarina Vasconcelos mostra uma aguda atenção à forma de ver (filmar) os objectos, se quisermos a natureza morta como se diz de alguma pintura. E é em objectos como o puzzle (que este filme também procura ser) ou a bandeira (de quem traz algo para dizer) que Catarina Vasconcelos procura encontrar a avó perdida, e a mãe, e afinal toda a gente, muita gente (noutro plano que é o do texto, da narrativa, da banda de som, a poética história tão bem contada da memória da mãe encontrada nos sinais exteriores, por exemplo, numa feira da ladra em que se procurem roupas para vestir no filme a fazer com toda a gente alguma vez perdida, talvez a encontrar a ontologia do cinema sempre misteriosa que Bazin associou ao embalsemamento). 

Objectos são ainda os espelhos em que a cineasta se observa (e bem traduzem o plano filosófico da sua reflexão que vai além do registo da beleza que nos rodeia e sempre foi um desiderato de todas as formas de arte) ou noutra imagem reflectem numa árvore a de alguma outra que lhe é próxima (e assim cruza a fronteira da subjectividade e da objectividade). Verdadeiramente espelhos mágicos.

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Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

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