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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Mulher Do Próximo - José Fonseca E Costa (1988)

VARIAÇÕES SOBRE O CASAL


A Mulher do Próximo de José Fonseca e Costa parte evidentemente de um referente cinematográfico que é o casal Cármen Dolores-Virgílio Teixeira que havia protagonizado Um Homem às Direitas, de Jorge Brum do Canto. De certa maneira esta lógica de abordagem de um certo cinema popular português já estava inscrita em Kilas, o Mau da Fita, nomeadamente através da personagem interpretada por Milú, filme que aliás tem uma posição de charneira no desenvolvimento da filmografia de Fonseca e Costa.

Cármen Dolores e Virgílio Teixeira, no filme de Fonseca e Costa, reencontram-se muitos anos após um romance de juventude desfeito com ressentimentos de ambas as partes. E a respeito desse romance de juventude que o próprio filme vai aproveitar cenas a preto e branco do filme anterior de Brum do Canto. No início do filme ambos vêm reconhecer os cadáveres que resultam de um acidente de viação que envolve o marido dela e a amante, por coincidência filha dele.

Naturalmente desde logo este começo marcado pela coincidência põe em relevo o artificio narrativo que Fonseca e Costa vai ampliando ao longo do filme, até ao final circular com um novo acidente (real ou fictício?), em qualquer caso simétrico do acidente inicial. Não é estranho pois que Fonseca e Costa fale de um cinema de género, ou até de regras do «western», de tal forma o filme sempre deixa a nu o artifício da sua própria narrativa.

É assim que surge um outro polo importante do desenvolvimento da narrativa, a personagem interpretada por Fernanda Torres. Ela é, sem dúvida, o elemento de ligação com a estrutura de outros filmes de Fonseca e Costa, nomeadamente Sem Sombra de Pecado e A Balada da Praia dos Cães. Tal como as personagens de Vitoria Abril e Assumpta Serna, também a de Fernanda Torres retrata uma mulher a um tempo sedutora e imprevisível, que mobiliza as pulsões mais secretas das personagens com que cruza.

Não admira por isso que Fernanda Torres esteja ligada a um elemento edipiano que é quase constante na filmografia de Fonseca e Costa. Ela vai seduzir Virgílio Teixeira, que poderia ser seu pai (e no filme chega a haver a sugestão de que poderia até ser na realidade o próprio pai) e repare-se que a figura do pai era central em Sem Sombra de Pecado e também em A Balada da Praia dos Cães a paixão da protagonista pelo capitão é assinalada pelo facto de este ser um companheiro do pai dela.

Outra constante dos filmes de Fonseca e Costa é a dos espaços marginais, subterrâneos ou clandestinos, que vão do «Mal de vi­vre» de O recado, ao palácio de D. Gonçalo, de Os Demónios de Alcácer Quibir aos diferentes espaços de Kilas, ou a casa que serve de refúgio aos protagonistas de A Balada da Praia dos Cães. Em A Mulher do Próximo esse espaço é o sótão, onde Cármen Dolores vai folhear o álbum   de recordações do passado, mas principalmente onde Fernanda Torres se encontra com o mordomo, Vítor Norte.

O filme de Fonseca e Costa acaba por se construir com elegância e bom gosto num terreno difícil que mistura o melodrama e a comédia e momentos que facilmente poderiam resvalar para o desastre descabelado. A ameaça principal vem, aliás, da personagem mais caricaturai que é a de Mário Viegas, o marido enganado entretido com um quarteto musical que não é de cordas como o engraçadíssimo grupo que acompanhava Alec Guiness no filme inglês de Mackendrick. E é nesta reminiscência, sem duvida abusiva, que talvez se possam entender algumas reservas que o filme de Fonseca e Costa pode levantar. E que finalmente se a elaboração do argumento denota uma preocupação pouco frequente entre nós, onde pode dizer-se que são raros os filmes de argumento, em que, portanto, se dá ao trabalho de argumentista o devido valor, tudo arranca. Todavia, é uma história inexistente, vazia, anedótica, onde não se corre um risco mais vital, que leve a que o filme perdure na memória do espectador como uma experiência significativa, que poderia mesmo sei ao nível da comédia, da caricatura ou da farsa, ou da história de sentimentos.

A Mulher do Próximo e feito mais com «métier» do que com convicção e compromisso pessoal e apenas nas entrelinhas (o retrato de Fernanda Torres ou o fascínio do sótão) se avistam os tiques de Fonseca e Costa que são a sua marca pessoal e possivelmente a sua motivação mais íntima, em todo o caso extremamente contida, como vem sucedendo nos seus filmes depois de Kilas, o Mau da Fita.  E essa contenção, se dá ao cinema de Fonseca e Costa uma certa qualidade do produto normalizado, retira-lhe a vitalidade e o risco dos seus filmes iniciais, provavelmente mais genuínos e interessantes.

Resta esperar talvez que Fonseca e Costa se lance numa fase de maturidade, alcançando a síntese das virtudes, das que se lhe reconhecem nos seus primeiros filmes e daquelas outras de que, nos filmes mais recentes, vem dando provas.

Talvez, assim, pudéssemos festejar o estabelecimento de uma outra via, menos esquisita, mas igualmente digna de atenção, no quadro global da produção cinematográfica portuguesa. Tratar-se-ia de contar melhores histórias, posto que Fonseca e Costa já revelou que é o cineasta português mais sensível a esta característica narrativa, que obviamente não é desprezível na própria natureza do cinema.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 17/12/1988

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