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Foto do escritorAntónio Roma Torres

A Sala Dos Professores - Ilker Çatak

PENSAMENTO MATEMÁTICO E PARANÓIA

António Roma Torres

 

Há filmes que têm mostrado como funciona o pensamento matemático e o rigor da lógica, e como há uma zona de penumbra que se abre por trás da necessidade de certeza, que o raciocínio probabilístico aparentemente desafia, numa manifestação tendencialmente paranóica que talvez seja moderada se a cada passo da lógica não for alienado o compromisso com a acção que possa diminuir o número de hipóteses a considerar e constituir um saudável teste de realidade. Uma Mente Brilhante (2001) era um excelente exemplo no retrato do risco de doença mental, mas também da sua compreensibilidade que faz extrapolar a questão para fora do mero exercício psiquiátrico, apoiado no percurso biográfico de John Nash (Russel Crowe), prémio Nobel de Economia em 1994 pela análise matemática do equilíbrio na teoria dos jogos não-cooperativos e posterior declínio mental e comportamental, num biopic do mediano Ron Howard, em todo o caso oscarizado na cerimónia de 2002.

Outros filmes têm mostrado os conflitos e as aprendizagens numa comunidade escolar e a importância que um professor pode ter para determinados alunos excluídos por algum tipo de discriminação, por exemplo racial. Sidney Poitier significativamente era o aluno rebelde que se opunha ao professor Glenn Ford em Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, no início da segunda metade do século XX, para uma década depois ser ele o professor a disciplinar uma turma rebelde numa zona pobre de Londres em O Ódio que Gerou o Amor (1967), de James Clavell. Ou Michelle Pfeiffer, já duas décadas depois, a tentar manter a chama acesa perante uma turma de jovens negros e latinos em Mentes Perigosas (1995), de John N. Smith. Mas tudo nestes casos a subjugar-se a um condicionalismo melodramático, tipo Adeus, Mr. Chipps (1969), remake de Herbert Ross de um clássico de Hollywood, com Peter O'Toole e Petula Clark, que ainda de certa maneira sobrevive agora em Os Excluídos (2023), de Alexander Payne, simultaneamente em cartaz, aparentemente resultando em pouco mais que um veículo esforçado para um exercício de interpretação de Paul Giamatti, aliás nomeado para o oscar de actor principal.

Sala de Professores (2023), do turco-alemão Ilker Çatak (n.1984), tem e não tem que ver com estas duas sólidas tradições, sendo um filme europeu, este ano nomeado para oscar de melhor filme internacional, mas naturalmente incluindo-se numa tradição do cinema social britânico, nomeadamente de Ken Loach (não esquecer o seu já longínquo Kes - Os Dois Indomáveis), mais até do que na do cinema germânico de autor, um pouco mais soturno e desesperançado, de Michael Haneke (n.1942) ou mesmo Christian Petzold (n.1960).

Carla Nowak (Leonie Benesch), professora em início de carreira, acaba de ser colocada numa escola secundária. Ela tem uma turma de Matemática (e Educação Física), do 7º ano de escolaridade, multicultural nas suas origens. Ela própria ao colega, Mislosz Dudek (Rafael Stachowiak), que se lhe dirige em polaco, língua das suas origens comuns, numa das primeiras cenas, sugere-lhe que falem alemão, dando nota da visibilidade das migrações, como pano de fundo social germânico em que tudo se vai passar. E um dos seus alunos, Ali (Can Rodenbostel), de origem turco-árabe, torna-se suspeito dos roubos surgidos entre os alunos, embora os pais, o senhor (Özgür Karadeniz) e a senhora Yilmaz (Uygar Tamer), chamados à escola, tentem justificar doutro modo a quantia de dinheiro encontrada nos seus pertences. Mais tarde, aliás, ela própria suspeita de Frederike Khun (Eva Lobäu), funcionária da secretaria, através de um estratagema que montou no seu computador filmando-a a roubar a carteira que tinha deixado no casaco na sala de professores e que a identifica através da blusa que usava, mas depressa se apercebe que o acto dela pode ser tão censurável como os roubos que toda a gente pretende investigar. A directora da escola, Bettina Böhm (Anne-Kathrin Gummich), e um professor mais antigo e aparentemente mais preconceituoso, Thomas Liebenwerda (Michael Klammer), exprimem a tolerância zero para os comportamentos censuráveis e pretendem proteger a escola do descrédito e do caos que a generalização da informação pode induzir na comunidade escolar. Ao mesmo tempo Carla vê perturbada a relação de confiança que quer inspirar nos seus alunos, o que é agravado por uma entrevista que alguns deles lhe fazem para o jornal escolar, e pelo conflito entre o projecto educativo e a necessidade disciplinar que o seu papel de professora lhe exige. No meio disto tudo e da suspensão da funcionária, que é também mãe de Oskar ( Leonard Stettnisch), um dos seus melhores alunos que ela vê fugir-lhe nesses curtos dias, passando de uma posição de observador distante quando não é solicitado a participar, para uma, literalmente surda mas principalmente muda, medição de forças no embate dramático entre eles, num dos mais inteligentes finais neste género dramático, que não resolve o clássico whodunit do argumento convencional mas mostra como alguns silêncios valem mais que mil palavras.

Ilker Çatak, o realizador, é um imigrante turco de terceira geração, nascido em Berlim, mas com parte do percurso escolar feito em Istambul (colega de escola do co-argumentista Johannes Duncker) e escola de cinema de regresso à Alemanha. Considera-se turco e alemão (ver entrevista ao site americano  A.Frame - The Academy's Guide to Movies), incorporando as duas culturas, o que vai permitir-lhe não jogar na estafada verosimilhança psicológica que o cinema mais corrente se habituou a criar, com as cenas da vida familiar dos vários personagens que a câmara de Çatak, com a directora de fotografia, Judith Kaufmann, muito próxima dos rostos particularmente de Leonie Benesch e de Leonard Stettnisch, não vai mostrar, mas antes os define pelo que fazem e pelo que dizem oficialmente, que é também uma forma de fazer, e não pelos momentos confessionais a que o filme evita recorrer (ver entrevista ao site de notícias de Hollywood Deadline).

A atmosfera que subitamente parece condensar-se quando o foco se transfere dos roubos num estabelecimento de ensino (e educação evidentemente) para toda uma realidade política e até diplomática, que tem um referente mais geral e complexo e aponta para uma solução complexa, quase tão difícil para quem não tem uma formação matemática como a do cubo de Rubik que se torna um objecto transitivo (ou metafórico) entre a professora Carla e o aluno Oskar, cada um contido, não dizendo tudo o que pensa, porque não pode, ou principalmente não quer, evitando a perda de dignidade que qualquer transigência poderia trazer.

O que torna o filme em certos momentos sublime, é a sua recusa da ditadura da interpretação dos comportamentos, ou da empatia mais ou menos emocional ou do jogo abusivo das percepções, que se sobrepõem à objectividade e dignidade que os personagens adquirem quando finalmente podem ter a sua própria voz ou mesmo, paradoxalmente, o direito ao silêncio.

Se quisermos encontrar um referente para o cinema alemão de Ilker Çatak (ele que só sabe em alemão o ditado "não é sobre o que tu dizes, mas é sobre o que tu fazes"), que ultrapasse a relação entre o colonizador alemão, europeu, e o colonizado periférico, do próximo oriente, que num passado histórico de impérios já levados pelos ventos da história podem ter tido outros significados, poderíamos sugerir o outrora um casal de cineastas, Wolker Schlondörff (O Jovem Törless, A Honra Perdida de Katharina Blum ou O Tambor) e Margareth von Trotta (A Honra Perdida de Katharine Blum, co-realização, Os Anos de Chumbo ou os biográficos Rosa Luxemburg e Hannah Arendt). A Sala de Professores é sobre o microscomos da educação, mas tem a virtude de subitamente nos transportar para o plano político e filosófico de uma Alemanha (ou uma Europa?) no Outono, para usar o título de um filme colectivo em episódios em que Schlondörff (e mesmo von Trotta não creditada no genérico) colaborou, com outros nomes do então novo cinema alemão. Que o fenómeno seja cíclico como as estações da natureza ou as gerações que se sucedem num universo escolar, talvez possa ser a boa notícia de uma ameaça que muitas vezes pode ser tomada como crepuscular e quiçá irreversível.

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