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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Adeus, Pai - Luís Filipe Rocha (Portugal, 1996)

Atualizado: 28 de jun.

NO TEMPO DE CONTAR HISTÓRIAS

É uma boa verdade que algumas coisas necessitam de prática para as sabermos fazer. "Toda a gente sabe contar histórias" diz Filipe (José Afonso Pimentel) ao pai (João Lagarto) em "Adeus, pai" de Luís Filipe Rocha. "Não sei; já não conto histórias há muito tempo" responde-lhe o pai. No cinema, e particularmente no cinema que conta histórias que Luís Filipe Rocha parece perfilhar, acontece a mesma coisa. Se "Adeus , pai" revela uma considerável segurança, isso naturalmente passa pela experiência continuada que o cineasta tem tido, sucessivamente com "Amor e dedinhos de pé" e "Sinais de fogo", ambos, como o presente filme, produzidos por Tino Navarro. Note-se desde já que Luís Filipe Rocha ultrapassa da melhor maneira em "Adeus , pai" algumas das debilidades que lhe notáramos nos dois anteriores filmes. "Adeus, pai" é a história de um adolescente, de treze anos, que numas férias com o pai nos Açores "acerta algumas contas com ele". Luís Filipe Rocha pontua a história com momentos de emoção e de humor, conseguindo um registo particularmente equilibrado e, ao mesmo tempo, um compromisso pessoal que parecia diluir-se nos filmes anteriores em que adaptara textos literários e não se baseara, como agora, num argumento original seu. No entanto talvez não resida apenas na sua génese o sucesso do presente filme, mas também no tratamento dramático dado aos personagens. Em "Amor e dedinhos de pé" Luís Filipe Rocha centra o filme em Frontaria (Joaquim de Almeida), quando tudo parecia sugerir que Vitorina (Ana Torrent) possuía uma força dramática muito mais capaz de ganhar o filme. Em "Sinais de fogo", talvez em função de uma leitura demasiado reverencial do romance de Jorge de Sena, Luís Filipe Rocha faz um filme com mais certezas do que a turbulência da maturação psicológica e política do personagem suporia. Em qualquer dos casos o resultado distancia-se da acção dramática e dos personagens, não pelo lado do tratamento estético, como no inicial "Cerromaior" (aliás, também uma adaptação literária) , mas por uma preocupação quase demasiado ilustrativa das narrativas, que relega as emoções e os aspectos expressivos para um segundo plano. "Adeus, pai" não perde nunca de vista o personagem central, precisamente um jovem, o que não é muito frequente no cinema português, se exceptuarmos os recentes "Idade maior" de Teresa Villaverde e "Até amanhã , Mário" de Solveig Nordlund e o inesquecível "Aniki Bobó" de Manoel de Oliveira. Aliás, se o filme pode ter alguns pontos em comum com "Até amanhã, Mário" (o cenário de uma ilha, a doença de um dos pais ), talvez a memória de Luís Filipe Rocha tenha mais que ver com um filme como "Cria cuervos" de Carlos Saura (tenha-se em conta que a actriz de "Amor e dedinhos de pé", Ana Torrent, fora a criança do filme de Saura). Realmente, embora o personagem de "Adeus, pai" seja um rapaz, há igualmente o acerto de contas com o pai, distante e arrogante, totalmente ausente de um imaginário juvenil, a valorização da fantasia na resolução dos conflitos emocionais e uma espécie de reminiscência de uma omnipotência mágica de que há que despedir-se ao crescer. A história de "Adeus, pai" é comovente e Luís Filipe Rocha, muito ajudado pelas excelentes interpretações de José Afonso Pimentel e João Lagarto, sabe tirar partido dela, sem cair em rodriguinhos fáceis. Aliás, os diálogos do adolescente com o pai resultam em momentos particularmente interessantes, uma vez que Luís Filipe Rocha põe um extremo cuidado no retrato do mundo interior do jovem, onde o despertar da sexualidade e a sensação de tabu na comunicação com o adulto se manifestam de uma forma clara. Será interessante atentar que embora pareça um filme de ruptura na carreira de Luís Filipe Rocha, onde pelos meios de produção e de promoção se suspeitaria de um maior interesse comercial, "Adeus, pai" retoma a abordagem do despertar da sexualidade que é justamente um tema privilegiado e consistente na obra do cineasta. Por tudo isso se afigura injusta a forma pouco atenta como o filme tem sido recebido no meio cinéfilo , como se se tratasse de um cinema para um público preferencialmente infantil. Por outro lado há um mérito que não é menor no filme, que é o da própria atenção à génese das narrativas. A uma visão superficial poderia parecer excessiva a narração "off" do filme, mas ela é coerente com o desenvolvimento dramático que o surpreendente final resolverá, inclusivamente naquilo que pode resultar estranho na sequência narrativa do filme. Luís Filipe Rocha não apenas trabalha coerentemente o ponto de vista do narrador, que no cinema, ao contrário da literatura, é frequentemente iludido, como a vários momentos se centra no próprio valor que encerra o contar histórias. Filipe, o jovem que conta a história, no seu interior por sua vez modifica a história: a do avô, por exemplo, misturando-a com a história do marinheiro, o pai que não se conheceu, que lhe é também contada pela dona de casa açoriana; ou no sonho em que se convocam todos os personagens, e o fascínio da aventura , aqui ligada a África , como em "Amor e dedinhos de pé" se ligava ao Oriente, se torna ameaçador, não tanto pelas histórias da guerra colonial que o "Rodinhas" (José Fanha) contara, mas pelos elefantes que o motorista negro dissera que amansava contando-lhes histórias. Mas uma vez mais aí a história é ainda outra, o que numa psicanálise grosseira se chamaria a observação da cena primitiva, os pais fazendo amor, e obviamente associa esta inevitabilidade da morte do pai (entenda-se da figura paternal, protectora ou ameaçadora) aos treze anos (seja a doença do pai , ou o suicídio do seu próprio pai que o pai lhe conta, ou genericamente o modo de vida doentio ou suicida que o mundo supostamente adulto parece conter dentro de si) , com a experiência do primeiro amor. "Afinal, comenta Filipe, nós podemos viver sem pai". Talvez não possamos, atrevo-me a sugerir que Luís Filipe Rocha pretende dizer, é viver sem história, ou sem histórias

A.Roma Torres in Jornal de Notícias, 4/1/1997

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