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Amor De Perdição - Manoel De Oliveira (1979)

A (SUPOSTA) PERDIÇÃO DE OLIVEIRA OU O AMOR COMO TEXTO

 

António Roma Torres

 

Jornal de Notícias, 27/11/1979 

 

 

Creio que a maior parte das pessoas terá de Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco uma imagem que o autor assim resumia: "a rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartifício das locuções" (prefácio da 2ª edição). Mas essa interpretação do romance, ainda que produzida pela avaliação do próprio autor, parece ocultar o drama que o atravessou, que é ainda Camilo que revela: "Escrevi o romance em quinze dias, os mais atormentados da minha vida. Tão horrorizada tenho deles a memória que nunca mais abrirei o Amor de Perdição, nem lhe passarei a lima sobre os defeitos nas edições futuras..." (Memórias do Cárcere). Estas passagens parecem-me essenciais a qualquer leitura que se faça do romance e agora do filme de Manoel de Oliveira que nele se inspirou. A solução desta aparente contradição só é possível reabrindo o Amor de Perdição e é isso que Manoel de Oliveira se propõe fazer nada desprezando da obra para assim lhe poder conhecer o seu sentido mais profundo.

 

As "peripécias", o "enredo", poderiam ainda ser mais "concisas", reduzir-se aos "pontos essenciais", no seu equivalente de tradução cinematográfica clássica, mas nesse "esqueleto dramático" ficaria talvez apenas o que só superficialmente moveu Camilo Castelo Branco. Aliás essa é uma questão clássica na abordagem da relação entre literatura e cinema, sobre a qual reflectiu um outro filme português. Uma Abelha na Chuva de Fernando Lopes, que introduziu mesmo a propósito de uma récita a leitura popular mais restritiva de Amor de Perdição, que muitos esperavam confirmar nesta terceira adaptação cinematográfica que Manoel de Oliveira assina.

 

Havia pois que redescobrir no que ele tem de "incoscientemente confessional" (Luís Amaro de Oliveira, Amor de Perdição, edição didáctica, Porto Editora, 1979). A textualidade do filme é antes de mais uma imposição dessa procura de algo que é indissociável do estilo, do formal que de alguma maneira é simultaneamente explícito e oculto. Em continuidade com os anteriores filmes de Manoel de Oliveira, trata-se a rigor de "ouvir" Camilo Castelo Branco mais do que interpretá-lo.

 

Por isso o filme estrutura-se precisamente na banda sonora, sem que no entanto isso anule a importância que a criação visual conserva no conjunto da obra. A esse respeito será interessante comparar o filme de Manoel de Oliveira com Fortini/Cani de Jean-Marie Straub no sentido em que ambos os filmes usam a redundância como revelação dos autores abordados, podendo no entanto Amor de Perdição recorrer a uma extrema sedução visual que nasce necessariamente do carácter de ficção, mas é simultaneamente o compromisso pessoal do director cinematográfico, o que vai permitir também uma outra leitura de Amor de Perdição como termo de uma trilogia que inclui O Passado e o Presente e Benilde ou a Virgem-Mãe.

 

Mas há uma outra razão que reenvia o filme para o textual. É que o romance de Camilo Castelo Branco é já em si composto de vários textos, escritos uns, como a nota de assentos sobre a passagem de Simão Botelho pela Cadeia da Relação do Porto onde também Camilo escreveu o seu romance ou as cartas entre Simão e Teresa que muitas vezes repetem a própria narrativa central, bebendo a sua inspiração da tradição oral outros, desde todas estas "memórias de uma família" transmitidas pela tia de Camilo, irmã mais nova de Simão Botelho, de que Manoel de Oliveira se serviu na adaptação televisiva para a ligação dos vários episódios, até às narrativas de vários personagens - João da Cruz, o comandante do navio, etc. - sobre pontos da acção derivados do fio principal. Tudo isso constitui o Amor de Perdição de Camilo num "romance concebido como  o objectivo previsto de ser contado ou lido a um auditório" (Luís Amaro de Oliveira, op. cit.) o que de alguma maneira o filme pretende concretizar, contudo sem qualquer empobrecimento da sua estrutura cinematográfica, como algumas acusações apressadas pretenderam, certamente percebendo mal os vários registos do filme e proclamando sem razão a perdição do talento daquele que tem sido considerado o maior cineasta português.

 

Texto sobre o amor, escrito na prisão, a que o levara o amor por uma mulher casada chamada Ana Plácido, e num espaço fechado (prisional mas também social) onde o amor só pode restar enquanto texto, Amor de Perdição pode alcançar por momentos a formulação de ensaio. Mas o romance é de Camilo é nas suas próprias palavras um texto sobre "a falsa virtude dos homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra". Simão "amou, perdeu-se, e morreu amando". A perdição é algo que parece pairar desde a nascença no destino de Simão ("morto me disseram que tinhas nascido, mas o teu fatal destino não quis largar a vítima"), mas pelo menos depois de matar Baltasar Coutinho, Simão parece já procurar não a realidade do amor de Teresa mas um certo percurso suicidário, onde emerge uma valorização pessoal tão rígida como a dos princípios de Tadeu de Albuquerque, ou de Domingos Botelho, ou mesmo num outro plano de João da Cruz. "Por amor da minha dignidade me perdi", diz já Simão assumindo um debate que é principalmente com ele próprio. Amor de Perdição aliás está longe de ser uma explanação de princípios a defender. "Factos e não teses é o que trago para aqui. O pintor retrata uns olhos e não explica as funções ópticas do aparelho visual" - escreve Camilo e isso é fundamental no estilo de Manoel de Oliveira que a prpósito de Benilde dizia já ter pretendido tornar "participante desde o começo no julgamento das diferentes posições postas em jogo no filme", o que quer dizer obviamente não adoptar o ponto de vista de nenhum dos personagens.

 

Camilo não defende realmente princípios mas parece haver paradoxalmente um grande sentimento de culpa face a duas pulsões que percorreram desordenadamente a sua vida: o amor e a morte. Claramente são os personagens de Manuel Botelho, irmão de Simão e aliás pai de Camilo, e de Mariana que em vários planos se parecem aproximar de Camilo de uma forma menos idealizada, únicos personagens aliás que parecem libertos da esfera angustiante dos princípios morais, embora entre a "infâmia" de Manuel e a "nobreza" de Mariana haja uma distância cuja valoração em todo o caso lhes é exterior.

 

Nos amores clandestinos de Manuel Botelho ou na oferenda de Mariana, a que o filme de Manoel de Oliveira dá uma excelente expressão visual, e até no diálogo travado na presença de ambos na cela em que Simão está preso, residem as únicas expressões sensuais de toda a história muito mais voltada aliás para os sentimentos idealizados de uma pureza virginal ("cuidei que era santa a paixão que absorvia todas as outras, ou as depurava com os seu fogo sagrado...nunca os meus pensamentos foram por um desejo que eu não possa confessar alto diante de todo o mundo...diz tu, Teresa, se os meus lábios profanaram a pureza dos teus ouvidos"). Por outro lado Mariana é a única personagem que realiza de modo voluntário uma opção suicida que está igualmente inscrita em Simão e em Teresa e evoca necessariamente o próprio suicídio de Camilo anos mais tarde. Essa morte é de alguma forma o casamento impossível. o desfecho triangular que une Simão, Teresa e Mariana, o que juntamente com a ligação entre  Tadeu e Teresa, ou a outro nível entre João da Cruz e Mariana (ver Eurico de Figueiredo, A Problemática da Adolescência no Amor de Perdição, O Jornal da Educação, nº 28, Nov. 1979) reforçam o carácter transgressor de Amor de Perdição que parece ser um dos seus códigos mais resguardados, cuja consciência não surpreende em Manoel de Oliveira no prolongamento de certa maneira de O Passado e o Presente. Não é o que o desenvolvimento de acção parece querer ocultar na descrição de valores sociais dominantes em determinada sociedade, ou seja, o explicitamente reprimido, que merece maior atenção, mas sim o que a conduta dos personagens desvenda sobre "a fraca natureza, que é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda incoerência, absurdezas e vícios no homem que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástica vai vivendo e morrendo" - o sublinhado é nosso para concluir que para lá de uma imensa culpabilidade que é o preço pago aos valores do seu tempo, há também uma profunda compreensão da natureza humana em todo texto de Camilo.

 

Amor de Perdição encerra na obra de Manoel de Oliveira uma trilogia sobre os "amores frustrados" que agora deixará lugar a outros projectos já anunciados em algumas entrevistas - O Negro e o Preto, uma ideia de Manoel de Oliveira que Vicente Sanches, autor da peça em que O Passado e o Presente se baseou, desenvolveu num esboço de guião já publicado, ou Não, um conjunto de episódios históricos sobre "batalhas perdidas". Se O Passado e o Presente, Benilde ou a Virgem-Mãe e Amor de Perdição, individualmente considerados parecem submeter-se totalmente à estrutura interna de textos prévios à versão cinematográfica, a sua consideração em conjunto melhor demonstrará o espaço de criatividade de Manoel de Oliveira que se não esgota na beleza formal de encenação ou na descoberta de certas soluções narrativas mais ousadas. O Passado e o Presente  é assim um inicial retrato satírico da sociedade adulta e integrada depois nos filmes seguintes nos Melo Cantos e nos Tadeu de Albuquerque. O contraponto crítico tem ao longo do filme um equivalente musical, a marcha nupcial, que se vem a identificar nas cenas finais com as imagens de um jovem que toca orgão, a nosso ver uma das chaves mais timidamente enunciadas no filme. Benilde ou a Virgem-Mãe e Amor de Perdição explicitam um pouco mais a óptica de Manoel de Oliveira, não tanto nos personagens femininos em que a nossa atenção se prende mais facilmente, mas nos protagonistas extremamente jovens que são Eduardo e Simão, entregues incondicionalmente a um amor sem limites, de certo modo já enunciado em O Passado e o Presente no personagem também suicida de Firmino. Distanciando-se de Camilo Castelo Branco, o mundo de Manoel de Oliveira não é o da predestinação pelo menos no plano individual mas o de uma opção de fé sem grandes elementos racionais, que tem o valor de uma revelação, até mesmo de uma conversão no caso de Simão. As referências cristãs não são estranhas a esta experiência "saudável" da loucura, retomando Manoel de Oliveira o tema da morte presente em toda a trilogia dos "amores frustrados" mas também na sua obra anterior, de uma morte por amor é certo, quase melhor de uma morte em vez do amor - ou seja, claramente nas próprias palavras de Manoel de Oliveira trata-se do "símbolo de mulher ideal, ou o ideal em si mesmo: essa coisa abstrata ou mesmo abstrata pela qual os homens se entregam tudo dando - e de que a vida representa a menor parte". Já em O Passado e o Presente, filme que de alguma forma tornou necessários Benilde ou a Virgem-Mãe e Amor de Perdição, havia a convivência num registo entrelaçado e de distinção difícil, no campo das projecções que a natureza humana é capaz de conceber, de uma simples capa idealizadora das forças e valores frequentemente ferozes e violentos que nascem de determinado contexto social (se quisermos, a ideologia), e a possibilidade entrevista de os transcender em motivações mais profundas, vitalmente imperativas (se quisermos talvez o espírito que pode ser o amor, a revolução, Deus, etc., etc.). Essa mistura e essa distinção é a nosso ver a procura que justifica os filmes desta trilogia que Manoel de Oliveira acaba de encerrar.

 

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