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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Ana - António Reis & Margarida Cordeiro (1982)

A PESQUISA SEMIOLÓGICA

No final de um Congresso sobre "Comunicação.Inquietação" foi exibido o filme português ANA de António Reis e Margarida Cordeiro. Os autores estiveram presentes no final da sessão.

Um dos níveis de leitura que parece mais produtivo no cinema de António Reis e Margarida Cordeiro é (...) o do trabalho de pesquisa sobre os sinais através do que se conhece da realidade. Dito de outro modo, o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, para lá do apelo antropológico e de uma identificação ancestral, que muitas vezes comove e conquista o espectador sensível numa primeira aproximação, é sem dúvida um constante questionamento sobre a visibilidade.

Logo no início de ANA há um texto que nos diz que "naqueles dias a natureza parecia recolhida ao invisível sob o olhar da mãe". E toda a elaboração de ANA parece pretender construir um olhar íntimo sobre as coisas como se procurasse o lado por dentro da natureza. A sensibilidade e a revelação podem ter naturalmente uma conotação religiosa que não está totalmente ausente de ANA - a cena da ama no início do filme, até numa referência ao presépio - mas o filme parece preocupar-se com questões de linguagem numa atenção aos sinais retirados dos dados mais imediatos da consciência na sua dimensão psicológica, muitas vezes enganadora.

Repare-se que esta pesquisa de António Reis e Margarida Cordeiro vem já de filmes anteriores. Em Jaime, média-metragem sobre um paciente longo tempo internado num estabelecimento psiquiátrico, há uma atenção aos escritos do personagem, onde o sentido progressivamente se torna estranho (trata-se provavelmente de uma vivência esquizofrénica) e o significado começa a perceber-se pelo grafismo que vai prolongar-se inequivocamente nos desenhos que foram o ponto de partida do interesse pelo personagem e pela sua visão do mundo. Em Trás-os-Montes a lenda e a magia sobrepõem-se ao saber comum e os rapazitos não encontram no prontuário ou no álbum de fotografias os registos de uma outra percepção da realidade. Do mesmo modo um monólogo de Kafka, de A Muralha da China, é dito em dialecto mirandês confundindo-se com o depoimento colhido jornalisticamente na população local.

Há em António Reis e Margarida Cordeiro uma recriação que coloca o cinema num plano de igualdade com as artes plásticas ou a música, menos dependentes do sentido usual das formas de comunicação e particularmente da linguagem.

Esse efeito de alguma forma produz-se por uma espécie de suspensão onde os personagens se desgarram do contexto e onde a visibilidade é um estado interior. Em ANA há uma referência à recepção da luz e à composição das diferentes cores, como noutro passo se fala de um eclipse e tal como no que respeita às investigações históricas sobre as formas de navegação (semelhantes às da Mesopotâmia), e da passagem aos barcos votivos e ao culto dos mortos, há uma surpreendente proximidade entre a atitude científica e a atitude religiosa nas fronteiras daquilo que é a actividade criadora da arte.

Por outro lado, a determinados momentos a banda sonora oculta o choro (visível) das crianças ou o registo do vento na vegetação substitui os tambores do início do número de circo. Também esse destaque de um elemento principal em relação ao fundo surge em três belos momentos do filme, ligados à temática da morte que é central em ANA - quando a mãe Ana caminha no campo após descobrir as hemorragias que a vão vitimar, quando o filho regressa de automóvel sabendo do filme próximo, e na última cena que constitui uma elipse da   morte da mãe Ana. Há ao mesmo tempo um não-dito que questiona a própria narrativa cinematográfica em termos bastante inovadores.

ANA é um filme estranho, mas altamente expressivo e inquietador, digno sem dúvida da temática do congresso que o acolheu. (...) Já tenho dito sobre o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, e confirmei-o agora, que os seus filmes se constroem de uma forma cerrada, saturada de uma constante elaboração dos mais pequenos sinais, que só em posteriores revisões se começam a entender profundamente. É um cinema que merece ser visto mais de uma vez (...)

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 18/1/1986 

(transcrito in António Reis e Margarida Cordeiro A Poesia da Terra, ed. Cineclube de Faro, 1997)

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