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Foto do escritorAntónio Roma Torres

António Da Cunha Telles

ANTÓNIO DA CUNHA TELLES

António Roma Torres

(in Diccionario del Cine Ibero-Americano, España, Portugal y América, vol. 3, pgs 89-91, Sociedad General de Autores y Editores, Barcelona, 2011, trad. port. António da Cunha Telles Continuar a Viver, org. Manuel Mozos, ed. Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 2014, pgs. 25-31)

 

Personalidade da maior importância no chamado Cinema Novo Português, mais como produtor, no início da década de 60, do que pelos filmes que realizou. Fez os estudos secundários no Funchal, tendo ingressado como estudante na Faculdade de Medicina de Lisboa, cujo curso não concluiu. Aí inicia, no entanto, as primeiras actividades ligadas ao cinema, num filme científico realizado com o Professor Jorge Horta. No meio universitário promove ainda colóquios, cursos e outras iniciativas de formação que lhe deram a possibilidade de se candidatar a uma formação mais sólida fora do país. Obteve uma bolsa do Fundo do Cinema Nacional, organismo oficial responsável pelo apoio à produção cinematográfica, para frequentar o Institut d'Hautes Études Cinematographiques (IDHEC), em Paris, entre 1956 e 1961, onde obteve o diploma de realização e produção. Simultaneamente frequentou o Institut de Filmologie da Faculdade de Letras da Sorbonne e o Centre Audiovisuel da École Normale Supérieur de Saint-Cloud. Regressado a Portugal, dirige o jornal de actualidades Imagens de Portugal e os serviços de produção da Direcção Geral do Ensino Primário, além de retomar as actividades de formação no âmbito do cinema, criando o Estúdio Universitário de Cinema Experimental, frequentado por futuros realizadores como Fernando Matos Silva, Teresa Olga e Alfredo Tropa ou operadores como Acácio de Almeida ou Elso Roque. O Estúdio Universitário de Cinema Experimental constituiu o embrião de um primeiro curso de cinema com carácter técnico em Portugal. Mostra uma preocupação com a criação de estruturas renovadas no cinema português que se expressa ainda na criação das Produções Cunha Telles, responsável pela produção continuada de filmes de cineastas como Paulo Rocha, Fernando Lopes, Manuel Guimarães e António de Macedo, entre 1963 e 1967, e da distribuidora de filmes Animatógrafo, em 1973, que proporcionou a exibição em Portugal de filmes clássicos de cineastas como Sergei Eisenstein, Jean Vigo, Jean Renoir e Roberto Rossellini, ou nomes então emergentes como Bernardo Bertolucci, Nagisa Oshima, Alain Taner e Glauber Rocha, numa tentativa de encontrar espaço na exibição cinematográfica portuguesa para uma rede de "cinemas de arte e ensaio" ou "salas estúdio". 


UMA FILOSOFIA DE PRODUÇÃO 


No regresso da sua estadia em Paris, as primeiras experiências na área da produção são relativamente convencionais e ligadas ao investimento em filmes de ficção com aparente intenção de propaganda turística (Vacances Portugaises/Sorrisos do Destino, Le Pas de Trois, Le Grain de Sable, e As Ilhas Encantadas, com a participação de Amália Rodrigues, símbolo do fado português), liderados por Clara d'Ovar (Jad Films), uma artista portuguesa radicada em França, com a colaboração de Pierre Kast, que anteriormente dirigira Clara d'Ovar em  Uma Portuguesa em Paris; cineasta sobretudo ligado ao grupo dos Cahiers du Cinéma, e de dimensão menor no domínio da realização cinematográfica. Nesse contexto e embora esses filmes se saldem por um insucesso de bilheteira tanto em Portugal como em França, Cunha Telles está ligado à produção de um filme bem mais interessante, La Peau Douce ou Angústia, de François Truffaut, parcialmente rodado em Lisboa. No entanto o que caracteriza esta fase da sua carreira é a tentativa de criar um esquema de produção contínua com uma equipa de técnicos disponíveis, "uma filosofia de produção", como lhe chama (entrevista a M. S. Fonseca, Cinema Novo Português, ed. Cinemateca Portuguesa, 1985), retomando uma intenção de António Lopes Ribeiro, vinte anos antes, e antecipando a política de Paulo Branco, década e meia depois, já em condições de liberdade. O Cinema Novo emergente no início da década de 60 constitui, antes de tudo, uma iniciativa estrutural e não propriamente um projecto estético ou ideológico, como havia sido o esquema de produção ligado aos cineclubes que pouco antes estivera na base de Dom Roberto de Ernesto de Sousa. Enquanto Pierre Kast escreve sobre "cinco cineastas unidos como os dedos das mãos, Rocha, Lopes, Fonseca e Costa, Cunha Telles e Guimarães" (Cahiers du Cinéma, nº 153), o próprio Cunha Telles confessa que "talvez fosse mais amigo de alguns cineastas a quem nunca produzi filmes, do que de outros a quem produzi...porque quis produzir filmes com as pessoas que acreditava que eram capazes de fazer os melhores filmes e que tinham os melhores projectos" (entrevista citada de M. S. Fonseca). Realisticamente o diagnóstico feito é o do esgotamento total das estruturas de produção da época, ou seja, de Manuel Queiroz e da Cinedex, não parecendo haver qualquer possibilidade de continuidade da nova geração com a anterior, que lhe havia fechado totalmente as portas. A renovação surge claramente pelo lado de Paulo Rocha (Os Verdes Anos; Mudar de Vida) e Fernando Lopes (Belarmino), cineastas que, como Cunha Telles, tinham rumado a Paris (IDHEC) ou a Londres (London Film School), com bolsas para formação, neste caso, da Fundação Gulbenkian, que mais tarde estará ligada ao segundo fôlego desta geração; Manuel Guimarães (O Crime da Aldeia Velha, O Trigo e o Joio) e António de Macedo (Domingo à Tarde, Sete Balas para Selma) surgem mais numa linha de evolução na continuidade.

 

UMA TERNURA CONFUSA

 

A estreia como realizador em O Cerco parece decorrer de uma necessidade de recuperar um espaço no cinema português, em risco de ser injustamente considerado depois da falência económica da fase anterior, e de um isolamento face à sua geração, que se traduz na ausência do realizador no gupo de cineastas que funda, em 1967, o Centro Português de Cinema, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Desliga-se assim da imagem exclusiva de produtor e faz um filme que, de certa maneira, estabelece uma fórmula nova, capaz de inovar ao nível dos conceitos e aparentes limites expressivos, ao mesmo tempo que investe numa eficaz relação com o público. O Cerco lança como protagonista Maria Cabral, que logo depois reaparece em O Recado de Fonseca e Costa, e essa nova imagem está ligada, sem dúvida, ao sucesso do filme permitindo que o realizador se pudesse definir como "um realizador de actrizes" (Notícias Magazine, 18/2/96). Ao mesmo tempo o filme é um testemunho do marcelismo, expressando os dilemas de uma mudança mais querida que efectiva, num retrato de certa forma existencial, e apostando emm explorar os limites que seriam possíveis de alargar. O Cerco abre caminho a O Recado, o mais político dos filmes desta geração, assinado por Fonseca e Costa, curiosamente um dos "dedos da mão" que Kast referia, mas de quem Cunha Telles não tinha produzido filme algum na fase anterior. O Cerco cria um novo espaço de verosimilhança no cenário do cinema português. É uma Lisboa das avenidas novas, mais cosmopolita, onde se adivinha, numa das personagens, a contaminação do estrangeiro face ao qual o país ainda parecia querer parecer "orgulhosamente só", e não já o mundo rural da periferia da cidade das tentativas neo-realistas ou os bairros populares ou o Grandela das comédias dos anos 40 e 50. No entanto, mais do que o panfleto estético a que cada filme da nova geração se parece obrigar, O Cerco é um filme-crónica que olha as suas personagens com ternura, mesmo se paredes meias com alguma ambiguidade e confusão, fazendo jus ao subtítulo de um seu filme posterior (Setembro ou uma Ternura Confusa é o título alternativo de Pandora). O cineasta diz que "para se fazer cinema é extremamente importante, antes de mais, viver" (1971) e A. M. Seabra nota que não é por acaso que "vidas" e "continuar a viver" surgem em dois dos títulos dos seus filmes (Encyclopedia of European Cinema, Londres, ed. British Film Institute, 1995).


UM ESPELHO PSICODRAMÁTICO


Meus Amigos é um filme já do final do marcelismo, onde a desilusão é mais evidente num retrato de geração que substitui a passividade, por momentos quase desinteressada de O Cerco ou do posterior Continuar a Viver, por uma provocação quase cruel, bem patente no final dramático, com Manuel Madeira e Maria Otília, onde se interrogam os limites da ficção e da realidade, das personagens e da vida pessoal dos actores. É um filme longo, onde um certo estilo de filmar lembra o de Jacques Rivette, em L'Amour Fou ou, mais remotamente, o John Cassavetes de Husbands ou Shadows. Este é talvez o traço mais significativo das opções estéticas de Cunha Telles que, no entanto, sempre pareceu não ter muita urgência em construir uma obra como realizador, limitando-se a marcos esparsos que testemunham o trajecto político e cultural português, do marcelismo aos diferentes momentos da estabilização democrática e da evolução económica. Continuar a Viver é um filme de ocasião, documentando o processo revolucionário nas actividades de realojamento de uma população piscatória num porojecto de arquitectura participada, retomando o título de uma proposta de ficção subsidiada imediatamente antes do 25 de Abril. Cunha Telles não revela no entanto um verdadeiro interesse pelo documentário ou pelo cinema de intervenção, e passa ao lado da posição de cineasta como equivalente aos arquitectos confrontados com a população piscatória, antes mantém um olhar mais complacente do que solidário, próximo, de algum modo, do que revela perante as suas personagens de ficção. Vidas constitui um regresso à ficção, quase uma década depois do 25 de Abril, numa história de droga e de negócios ilícitos onde, com alguma ironia, se estabelece o contraponto com o momento político português da recuperação económica e da adesão à União Europeia. O filme joga com as personagens e os intérpretes (Carlos Cruz, Hélder Costa, Paulo Branco, Eduardo Geada) num registo psicodramático próximo de Meus Amigos. Neste curioso jogo de espelhos, Vidas não é só um outro retrato cifrado dos "seus amigos", mas aparenta introduzir-se por terrenos de uma projecção pessoal, como se cada uma das personagens pudesse constituir um "alter ego" do cineasta ou noutro nível do próprio espectador, onde se interpenetram os mecanismos da ficção e da confissão. Isso confere ao cinema de Cunha Telles um sentido de honestidade que previne o abuso emocional que, em certo sentido, a sua maneira de filmar as personagens no seu habitat, em momentos de amena cavaqueira, poderia proporcionar e para o qual resvala Meus Amigos na cena final. No entanto, a opção por um cinema mais narrativo do que dramático ou expressivo, que o protege desse risco, faz também com que o melhor de Cunha Telles se perca numa construção global relativamente frouxa. É esse cinema narrativo, de certa maneira mole, que sobressai na fase menos interessante da sua carreira como realizador, enquanto se dispersa na produção executiva de vários filmes estrangeiros rodados em Portugal ou na produção, mais uma vez - com condições de continuidade que a SIC Filmes privilegia - de telefilmes que o estabelecimento de estações privadas de televisão vai possibilitar (Amo-te Teresa de Cristina Boavida e Ricardo Espírito Santos, Mustang de Leonel Vieira, Aniversário de Mário Barroso, Facas e Anjos de Eduardo Guedes, Monsanto de Ruy Guerra, A Noiva de Luís Galvão Teles, Alta Fidelidade de Tiago Guedes e Frederico Serra, Teorema de Pitágoras de Gonçalo Galvão Teles, Os Cavaleiros de Água Doce de Tiago Guedes, 88 de Edgar Pêra, entre outros). Pandora ou La Dérive é um filme com um traço quase autobiográfico, apostando na presença muito física de Philippe Léotard, e mesmo numa aparentemente procurada semelhança com o realizador, história de amores acabados, mais uma vez, num cinema que se projecta nos retratos de mulheres. Kiss Me aproveita uma história de Vicente do Ó (de cujo trabalho como argumentista Cunha Telles produzira Os Imortais de António-Pedro Vasconcelos) para cruzar a imagem de momento de Marisa Cruz com a retrospectiva de características quase didácticas da luta contra a ditadura salazarista, num meio de província, e com uma certa nostalgia de Hollywood na referência mítica de Marlyn Monroe. Ambos os filmes parecem marcados pelo envelhecoimento e a morte. Filmes de despedidas e de epitáfios, Pandora e Kiss Me traduzem a preocupação de um cineasta para quem o tempo parece ser uma incógnita, o tempo político que todos os seus filmes de uma maneira significativa pretendem reflectir, e o tempo pessoal em que viver é "mourir un peu", parafraseando um conhecido aforismo francês retomado nos diálogos de Pandora. O seu cinema cria uma sensação de tempo suspenso que está em contradição com uma fluência que parece procurar. Pandora é nome de barco num filme, de certa maneira, de náufragos, mas é também o nome da mulher-mito que o cinema de Cunha Telles persegue, nome também da própria filha, a quem Vicente do Ó dedicara o romance Kiss Me, único dos seus filmes que não se baseia numa história sua. Pandora e Kiss Me, no entanto, não adiantam nada de significativo à carreira de um realizador inquieto que se dispersou em múltiplas direcções e sempre pareceu mais interessado em criar estruturas e defender a viabilidade económica de novas opções, do que em exprimir algo pessoal. Os filmes que dirigiu parecem resultar mais da necessidade de preencher um vazio dos autores cujo trabalho estimula através da produção, do que de alguma necessidade de expressão pessoal.

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Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

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