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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Aqui D'El Rei - António-Pedro Vasconcelos (1991)

O SENTIDO DA FICÇÃO

 

O principal inimigo do cinema português é muitas vezes por paradoxal que possa parecer o exibidor. Aqui d'El Rei de António-Pedro Vasconcelos, por exemplo, teve um começo da carreira nas salas comerciais que de maneira alguma se pode considerar exemplar. Isso não se ficou a dever com certeza a nenhuma espécie de má vontade, mas provavelmente apenas a alguns pressupostos duvidosos.

 

Filme com um orçamento vultuoso para o nosso meio e com possibilidades evidentes de uma eficaz comunicação com o público, a sala de cinema em que estreou no Porto e uma das salas escolhidas em Lisboa parecem acentuar a ideia de estarmos perante um cinema que se pretende popular. Mas a ilusão é quase óbvia. O tipo de filmes exibidos nessas salas, hoje em dia consideradas grandes, não tem nada a ver com um filme como Aqui d'el Rei e já não corresponde ao que se pode considerar um cinema com sucesso junto do público. O sector que se visava conquistar e quo pode sem dúvida sustentar um possível êxito simplesmente não está minimamente atento aos programas deste tipo de salas salvo quando o mesmo filme passa noutras salas o que não foi o caso da estreia no Porto de Aqui d'El Rei. Acresce que as condições de projecção que essas salas oferecem são muito insuficientes o que no caso se reflecte numa qualidade do som que tornava muitos diálogos imperceptíveis facto que nas cópias dos filmes estrangeiros se nota menos porque o espectador se socorre das legendas situação que não tem que ver com a qualidade técnica do próprio filme como se comprova na sala em que actualmente o filme esta a ser exibido corrigida que foi a situação espera-se que ainda a tempo de atrair os espectadores interessados.

 

Aqui d'El Rei é um filme assente sobre um notável trabalho de argumento o que tem sido frequentemente um aspecto negligenciado por algum cinema português. A história original foi escrita em colaboração com Vasco Pulido Valente de quem virá eventualmente a atenção à época histórica do século XIX e do final da monarquia portuguesa e depois António-Pedro Vasconcelos trabalhou com Carlos Saboga co-argumentista já nos seus dois filmes anteriores para lá de contribuições pontuais não creditadas no genérico, algumas das quais António-Pedro Vasconcelos tem referido em entrevistas.

 

Há diversas formas de trabalhar a ficção no cinema. Num dos modelas aposta-se na identificação do espectador, a narrativa flui com facilidade, a psicologia das personagens é convincente e o espectador quase se esquece que está a assistir a uma história implicando-se com emoção no que ocorre diante de si. É o objectivo frequentemente formulado pelo cinema de Hollywood. Outras vezes o espectador está sempre atento ao facto de se tratar de uma historia, admite os artifícios da narrativa, frequentemente, eles estão codificados e são inerentes ao género em causa, mas a sua adesão emocional continua a ser grande, no entanto, mais de tipo encantatório, preso da inteligência com que se articulam os vários elementos. É o que acontece nas grandes peças de teatro ou na ópera ou noutros registos menos ambiciosos como nas conhecidas telenovelas, aí pelo lado das regras do melodrama mesmo quando se pretendo uma credibilidade e uma naturalidade que remeteriam para o primeiro exemplo. E há uma terceira forma em que o texto pode ser já um valor em si, onde a atitude pode passar do contar para o recitar e se está num domínio mais cerebral, conceptual, contudo sem esquecer necessariamente toda a complexa gama de mensagens simultâneas que o cinema conjuga. É o que se passa em algum cinema de autor entre nós por exemplo com ManoeI de Oliveira, mas não deixa de ser curioso verificar que este registo se pode aplicar a cineastas americanos como Coppola, particularmente em O Padrinho III, ou Scorsese em O Cabo do Medo, o que bem explica algumas reticências, por exemplo, da Academia Americana. Evidentemente não há entre estes três modelos qualquer sentido hierárquico nem as fronteiras são tão nítidas como pretenderíamos para benefício da sistematização.

 

Aqui d'El Rei parece-nos pertencer ao segundo tipo de filmes e, diga-se de passagem, talvez ao menos explorado dos três no conjunto da cinematografia portuguesa. O filme define bem as personagens e os conflitos dramáticos, procura trabalhar o mais possível a lógica interna da narrativa, mas não hesita em assumir uni certo carácter artificioso que nomeadamente organiza a acção em duas partes onde se repetem as linhas de força e até alguns dos acidentes havendo apenas urna outra resolução dramática o que subtilmente altera se quisermos o tom e o clima narrativos.

 

A acção decorre no tempo das campanhas de África de Mouzinho de Albuquerque (José Mário Branco) personagem secundária do filme, mas cuja figura paira como uma sombra tal como na época histórica referida. O protagonista o tenente Nuno Lorena (Arnaud Giovaninete) é o oficial que acompanha Gungunhana de Moçambique para a Metrópole numa Lisboa em que o Governo de José Luciano de Castro (Antonio Ferrandis) não parece muito interessado na acção de propaganda e na imagem nacional que se projecta nesses feitos. António-Pedro Vasconcelos dá evidente atenção ao dilema do compromisso inerente a toda a acção política polarizando-a a esse nível entre José Luciano para quem    os compromissos não comprometem como se diz  nos  diálogos do  filme  e  Mouzinho   que   parece   só   reconhecer   a   ética na frontalidade. Naturalmente   o   filme   retrata um regime em crise e isso acentua-s pelas características dilemáticas e a ausência de personagens positivas   embora sobre quase todas as personagens António-Pedro Vasconcelos    pareça ter um olhar mais cúmplice do que critico.

 

Mas se a política é o pano de fundo a atenção principal do filme vai para a história de amor onde de certa maneira há um equivalente no dilema entre a paixão e o casamento. Mariana (Ludmila Mikael) é uma dama da sociedade aristocrática lisboeta perita em jogos, de amor, de salão e de alcova onde a sedução claramente deixa envolver os sentimentos como dirá Rodrigo (Jean Pierre Cassel), o marido e figura influente do governo de José Luciano de Castro. Tal como na política estamos na linha de intersecção entre um sentido estratégico da acção e as grandes crenças do homem perante si próprio e Nuno parecendo destinado a figurar  uma personagem do segundo tipo acaba por cair inapelavelmente no primeiro e no plano do argumento do filme poderíamos dizer sem culpa vítima do uma construção habilmente urdida à sua volta onde ele apenas não possui as informações todas e é se quisermos mais desprevenido que o espectador  o que sustenta grande parte da eficácia de comunicação do filme com o público. Curiosamente Mariana faz um percurso inverso e o filme mostra-a com grande talento em duas cenas fundamentais ao seduzir Nuno segundo a regra da ofensiva-retirada do "aide memoire" de estratégia militar escrito por Mouzinho, ídolo mitificado aos olhos de Nuno e no último encontro em que planeiam a partida para Itália quando o beija com paixão repetindo as palavras em contradição com o sentimento e muito bem justificadas na construção dos diálogos: não te amo, não te amo.

 

Aqui d' El Rei retoma em certa  medida o tema de Oxalá embora aí o contexto fosse actual e ainda ligado à ressaca pós-revolucionária. De certa maneira ambos os protagonistas recuam e conformam-se, mas talvez no presente filme António-Pedro Vasconcelos nos mostre de uma forma mais aguda    tanto a nível individual como eventualmente colectivo a dilaceração e o sofrimento de um destino pequeno que é porventura sempre o plano do quotidiano vivido com uma imaginação grande que é em certo sentido o plano do drama ou teatral. Como dizia a letra da canção do seu primeiro filme Perdido por Cem: "Marinheiro de raiz sem água para naveqar".

 

O filme tem excelentes interpretações particularmente de Jean Pierre Cassel e Ludmila Mikael e de alguns portugueses infelizmente com papéis mais reduzidos como Joaquim de Almeida, Rogério Samora e Julie Sargeant sendo também de realçar a qualidade da dobragem e dos actores que intervêm a esse nível particularmente Paula Guedes (Mariana) que já em A Balada da Praia dos Cães tinha de mostrado a excelente qualidade neste tipo de interpretação e José Viana (José Luciano de Cas tro) e mostra um cuidado grande com pormenores que frequentemente enriquecem as cenas com elementos de atenção a pontos secundários (os pedintes à porta da igreja, por exemplo) ou em conflitos derivados (o baptismo de Gungunhana) que dão ao filme uma gama de registos que caracterizam realmente o que é a ficção para lá de uma ideia original.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 17/5/1992

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