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Foto do escritorAntónio Roma Torres

As Bodas De Deus - João César Monteiro (1999)

A morte de Deus ou a completa ausência de fé

 

A personagem de João de Deus, interpretada pelo próprio João César Monteiro, surge pela primeira vez em "Recordações da casa amarela" (1989) e depois em "A comédia de Deus" (1995). "As bodas de Deus" é o segmento final da trilogia, ou melhor, o seu epílogo. No entanto o filme foi sendo adiado por uma querela com o produtor e parece ter nascido agora já fora do tempo, eventualmente com o cineasta já um pouco desinteressado da continuidade do discurso face aos filmes anteriores. No entanto reconhecer-se-á no filme o percurso de César Monteiro, ou do seu personagem, numa espécie de completa ausência de fé, para acompanharmos as referências religiosas que abundam na obra de João César Monteiro, e nomeadamente nesta trilogia. João de Deus é um visionário, mas o seu reino não é deste mundo, embora não se assuma em nenhuma espécie maior de dignidade, mas sim, quase diríamos, no seu oposto. Há um paralelo crístico no seu cinema, reconhecível nos diálogos ("Meu Deus, porque me abandonaste?", "este é o meu corpo"), quase no limite da blasfémia pelo contexto em que tais referências são evocadas. O sofrimento de João de Deus não é redentor, mas de certa maneira transmite uma irredutibilidade cuja representação só se entende numa ordem possível de transcendência. No entanto, João César Monteiro, mais ainda que nos filmes anteriores, foge de um discurso a que se associe qualquer ideia de esperança, desconfiando dos enganos que se adivinham por detrás desses discursos mais toleráveis.

No início do filme João de Deus (João César Monteiro) recebe uma mala de dinheiro de um suposto enviado de Deus (Luís Miguel Cintra). Na realidade o discurso de João César Monteiro organiza-se em termos de resistência a um deus dinheiro, mas essa resistência não se afirma no plano da eficácia (a força das armas escondidas na herdade apresenta-se de uma forma caricatural, não nos embalando numa fácil crença naquilo que mesmo sob a capa da rebelião, é ainda uma submissão à lógica do dinheiro).

A pobreza de espírito (equivalente da loucura?) parece ser o que identifica João de Deus, e curiosamente na cena, já próxima do final, no hospital psiquiátrico, o enviado de Deus é um louco, mas é precisamente o contrário de Lívio, um outro louco que o mesmo Luís Miguel Cintra interpretara também em "Recordações da casa amarela". O louco agora é um arrogante personagem de poder, e não, como Lívio, um personagem de resistência capaz da exortação que João de Deus pareceria cumprir, "vai e dá-lhes trabalho".

"As bodas de Deus" desenvolve-se , como é frequente na obra de João César Monteiro, como um conjunto de quadros, cuja ligação se estabelece no retrato continuado dum estado de espírito (aí talvez "Recordações da casa amarela" fosse um filme mais organizado num modelo narrativo permitindo dar uma outra consistência ao discurso do cineasta).

Mas talvez se possa dizer que João César Monteiro foge de um discurso a que se possa ligar qualquer responsabilidade, o que se repete nas diferentes situações, do salvamento de Joana (Rita Durão) nas águas do lago ao rapidamente frustrado idílio amoroso com Elena (Joana Azevedo) ou à rebelião mais ou menos de ópera a que fica ligado.

Há, mais do que desespero, uma espécie de paradoxal nobreza na radical ineficácia da personagem a que João César Monteiro literalmente dá o corpo, embora num ou noutro passo a identificação do actor com o personagem deixe margem para uma espécie de "private jokes" que parecem ficar ao nível do subentendido.

Prosseguindo na linha dos filmes anteriores, João César Monteiro expõe o corpo e a sexualidade a um nível quase extremo, que poderá para a sensibilidade mais comum quase tocar a falta de pudor. Mas a cena de cama com Elena, penosamente prolongada, traduz também a prisão do personagem, que começa no seu próprio corpo e não é apenas a do hospital psiquiátrico ou a do estabelecimento prisional, em que será depois confinado.

O corpo nu e magro, não apetecível, onde o prazer parece substituir-se pela compulsão, torna-se uma manifestação da doença e da morte, precisamente daquilo que o dinheiro do enviado de Deus não compra.

De certa maneira a presença de João César Monteiro, como actor, constitui um investimento ao nível do corpo, e precisamente retira o filme dum plano asséptico das ideias e das abstracções para se jogar no vivencial, por mais sofrido que possa parecer.

É de um homem só e pobre que se trata, em todas as circunstâncias, como se esse fosse o seu destino que nem mesmo um enviado de Deus pode mudar. Mas este homem pode ser um Deus, o trono de Deus um banco de jardim numa casa de alienados e este mundo uma realidade que apenas se pode recusar numa atitude de protesto, mesmo que pareça inconsequente. Este é o sentido (ou a falta de um sentido) que João César Monteiro parece persistir em dar à sua obra. Com o sofrimento e a visão poética de um Pasolini mas a desconfiança face às possibilidades de expressão da arte contemporânea e do cinema de um Godard, João César Monteiro talvez queira apenas permanecer um insubmisso. Se isso for possível.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 18/11/1999

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