top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Assassinos Da Lua Das Flores - Martin Scorsese

UM CINEMA DAS PALAVRAS NÃO DITAS

António Roma Torres

 

Houve tempos em que o cinema de Martin Scorsese se desenvolveu com grande pujança no tema da redenção a conduzir para uma palavra mágica, muitas vezes dita no final de um percurso angustiado ou sinuoso, à boa maneira do dinamarquês Carl Th. Dreyer e A Palavra, que de certa maneira foi a inspiração de A Última Tentação de Cristo.

Essa fase teve, por assim dizer, o seu ponto mais alto, já de certa maneira anunciado por Taxi Driver, em Touro Enraivecido, com o monólogo do pugilista, Jake LaMotta (Robert de Niro), citado de Há Lodo no Cais de Elia Kazan ("Eu podia ter tido classe. Podia ter sido um competidor. Podia ter sido alguém, em vez de um vadio, que é o que eu sou, sejamos realistas.").

Valeu-lhe em 1981 o oscar por interposto De Niro, e a inevitável Telma Shoonmaker na montagem, mas o da realização fugiu-lhe para um actor-realizador, Robert Redford, de uma geração anterior e em estreia na direcção cinematográfica, por Gente Vulgar, seguindo-se O Rei da Comédia, contrapondo De Niro e o cómico popular de quem os Cahiers gostavam, Jerry Lewis, num papel dramático e andou por Nova Iorque Fora de Horas, já num ritmo frenético, revisitou os clássicos americanos do início dos anos sessenta, A Vida é um Jogo de Robert Rossen, para acolher um Tom Cruise a despontar e dar um oscar a Paul Newman em A Cor do Dinheiro, e Barreira do Medo, de J. Lee Thompson, para celebrar o duelo do bem e do mal entre Nick Nolte e ainda De Niro em O Cabo do Medo.

Entretanto Scorsese foi crescendo numa espiral de violência, bebedeira e exaustão, anunciada logo no seu sketch Lições de Vida, de Histórias de Nova Iorque, e prolongada em Tudo Bons Rapazes, Casino, Por um Fio, Gangs de Nova Iorque e O Aviador, até alcançar finalmente o muito justo oscar de realização em The Departed - Entre Inimigos, onde os dois lados se mostram entrelaçados, prolongando-se numa incerteza e desrealização quase paranóica, em Shutter Island, ou, numa versão doce e infantil, em A Invenção de Hugo.

Esta terá sido a fase talvez G. K. Chesterton de O Homem que Era Quinta Feira, onde as duas organizações inimigas, da Scotland Yard e dos anarquistas, são afinal a mesma gente, na matriz católica de Scorsese que logo depois parece voltar a perder-se de novo na espiral louca de O Lobo de Wall Street até que surge Silêncio, o filme dos jesuítas portugueses no Japão do século XVII que Scorsese procurava fazer há muito tempo.

O filme é evidentemente sobre o silêncio de Deus, num cinema americano pouco dado às interrogações metafísicas de um sueco como Ingmar Bergman. Mas é também a palavra que se exige ao homem no limite do martírio ou da apostasia, ou o questionamento da fraqueza do padre Cristovão Ferreira (Liam Neeson), personagem representado por João Perry em Os Olhos da Ásia de João Mário Grilo. Se o homem não perdoa a Deus o seu silêncio poderá ao menos Deus (ou a ideia que temos dele) perdoar ao homem a sua fraqueza?

Nesta muito interessante nova fase na carreira de Scorsese surgem as imagens de uma crueldade inumana, representada nos dois personagens interpretados de novo por Robert de Niro: Frank Sheeran em O Irlandês, infelizmente remetido em exclusivo para o streaming da Netflix, sobre a mafia italo-americana em volta do assassinado Jimmy Hoffa (aqui Al Pacino, mas antes Jack Nicholson no biopic de Danny DeVito); e William "King" Hale em Assassinos da Lua das Flores, sobre um extermínio silencioso da nação índia Osange acantonada em reserva supostamente inóspita e imprestável para a exploração agrícola, mas onde vem a aparecer petróleo com o consequente enriquecimento dos nativos americanos.

O Irlandês constrói-se como uma verdadeira via crucis, agravada para o espectador que só a pode seguir no pequeno ecrã, longas três horas e meia que se justificam na sua resolução final, onde o culpado de sucessivas mortes, incluindo a de Hoffa nunca completamente esclarecida, nega confessar o crime no segredo do sacramento que lhe oferece o padre que o acompanha na velhice numa casa de repouso geriátrica.

Em Assassinos da Lua das Flores o caminho é menos doloroso. A encenação, de grandes cenas de multidões em espaços vastos ou de interiores encontrados por uma câmara com movimentos rigorosos, é feita com grande maestria e como que reabilita o velho western que foi um género popular, mas a esta luz ganha o peso do espaço dramático que lhe é inerente.

O final do filme é verdadeiramente surpreendente, não propriamente no desenrolar da narrativa, mas antes no espaço cénico irreal que Scorsese propõe.

William e o sobrinho Ernest Burkhart (Leonardo di Caprio, regressado ao cinema de Scorsese em que se iniciara com Gangs de Nova Iorque) estão encarcerados antes do julgamento, numa espécie de jaulas metálicas justapostas, tentando o criminoso mandante dissuadir o executor de testemunhar contra ele para beneficiar de uma pena mais leve assegurando-lhe a libertação de ambos por falta de provas. Ernest oscila entre as duas posições porque há outra realidade na equação, Mollie (Lily Gladstone, magnífico desempenho de uma actriz nativa americana), a esposa índia que num intervalo no julgamento lhe pergunta sem esperar resposta se esta a juntar alguma coisa à insulina que lhe injectava ao longo dos dias em que a sua saúde ia piorando.

Há silêncios diferentes no dispositivo dramático que Scorsese compõe. Há o silêncio culpado de William, o autor moral que granjeara, no entanto, alguma credibilidade social como protector da população índia. Há o silêncio subserviente de Ernest, chegado à reserva índia depois de servir nas trincheiras europeias da I Guerra Mundial como carne para canhão. E há o silêncio sofredor de Mollie, sem meios para se opor, mas com a dignidade de confiar apesar de tudo, seja no sentimento do outro com quem está afectivamente envolvida, quer na autoridade distante de Washington onde se desloca numa delegação da sua gente.

A cena verdadeiramente final do filme é de novo de uma natureza diferente de toda a narrativa anterior, mas muito significativa, na emissão radiofónica ao vivo, em palco, com efeitos sonoros produzidos no local, que conta o que ficará para a história, e em que Martin Scorsese, ele próprio em pequena aparição frequente no seu cinema, num conjunto de interventores, tem a última palavra, sobre o destino de Mollie após os factos mostrados (o que noutros filmes é apresentado numa letragem sobreposta).

Martin Scorsese talvez tenha tido presente, neste uso privilegiado dos planos de conjunto em quase todo o filme e nas últimas sequências, francamente estilizada a da conversa carcerária e de efeitos especiais a da radialização, as teorias bazinianas fundadoras do movimento neo-realista no cinema em que o director não pretende dirigir o olhar do espectador, agora com uma renovada expressão estética.

Assim a última coisa que Scorsese pretende, é sobrepor à história verdadeira uma interpretação psicológica a orientar o espectador. E isto é tão raro que poderá despertar alguma sensação de estranheza, mas é uma posição moral que parece também ter estado presente na forma como se relacionou com a nação Osange ainda sobrevivente, permitindo a sua supervisão sobre a imagem que é dada dos nativos, o que Lily Gladstone corrobora numa entrevista à Variety, ou como permitiu, mesmo não concordando, alguns improvisos nos diálogos de Di Capprio, o que parece ter irritado De Niro. O cinema que regressa às salas não precisa de ser o feudo de directores demiurgos que reinam em toda a cadeia da produção do filme. Podem querer ser antes os chefes de orquestra em que todos os elementos contem.

Verdadeiramente Assassinos da Lua das Flores é um filme em certo sentido polifónico que talvez em boa hora anuncie um modo novo na relação dos operadores e dos espectadores no mundo do cinema.

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Primeira Obra - Rui Simões

ELOGIO DA SINGULARIDADE António Roma Torres Primeira obra (exibido no IndieLisboa 2023) é um filme a vários títulos paradoxal. Na...

Comments


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page