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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Até Amanhã Mário - Solveig Nordlund (1993)

UM PESCADOR DE BALEIAS

O cinema português nem sempre tem a aceitação que merece. Até Amanhã, Mário teve uma carreira modesta e, no entanto, é um filme interessante que o publico poderia estimar. O filme foi realizado por Solveig Nordlund de origem sueca, mas portuguesa por um anterior casamento com o cineasta Alberto Seixas Santos e de certa maneira por adopção já que nos anos setenta participou principalmente ao nível da montagem num grande número de filmes portugueses e em qualquer dos casos foi em Portugal que se iniciou no cinema cuja carreira prossegue na Suécia principalmente no domínio da curta metragem documental. Até Amanhã, Mário é um regresso ao cinema de ficçao (Solveig Nordlund realizara a média metragem Nem Pássaro Nem Peixe, Dina e Django e alguns trabalhos de adaptação para televisão de peças encenadas pelo Teatro da Cornucópia nomeadamente Música Para Si) e também a Portugal e do que conhecemos da sua obra pode dizer-se que é o seu melhor filme.

A história do filme de certa maneira corresponde à dupla nacionalidade da autora. Por um lado, há um grupo de meninos da rua no Funchal de onde sobressai Mário (João Silva), um miúdo de oito anos que sonha com a pesca da baleia entre algumas pequenas aventuras no dia em que vai de Câmara de Lobos ao Funchal para visitar a mãe internada no hospital. Do outro lado, há um grupo de turistas nórdicos idosos e mais ou menos típicos que o filme vai acompanhando no seu dia turístico que habitualmente se cruza várias vezes com o itinerário do Mário.

Até Amanhã, Mário é uma história simples, mas que conjuga bem a poesia, a ironia e o retrato social numa tentativa de encontrar um equivalente actual de um certo estilo neo-realista. Não presidirá ao projecto de Solveig Nordlund aparentemente a tentativa de fundar uma estética, mas a autora parece ter encontrado um caminho na linha das preocupações sociais e populares de outros filmes seus, mas afastando-se de uma postura intelectual e austera que parece ter sido mais fruto da época e de um preconceito ligado ao cinema e ao teatro de que esteve mais próxima do que propriamente de uma sensibilidade pessoal.  O imaginário infantil de uma juventude bastante entregue a si própria dá ao filme um sentido da consciência social, mas ao mesmo tempo de aposta no instinto de sobrevivência e mesmo nas competências infantis.

De certa maneira embora o retrato dos turistas mesmo que irónico esteja longe de ser hostil o filme questiona as relações de exploração e mesmo de prostituição que frequentemente são vizinhas do turismo. Mas à denúncia o filme prefere jogar no olhar estrangeiro e numa certa distância com pontos de intersecção que afinal seriam até os desse confronto mítico que anima o filme entre o homem e a baleia. No diálogo de Mário com uma companheira das estratégias dos miúdos para captar alguns dólares aos turistas fala-se metaforicamente em caçar baleias referindo-se aos turistas.

O clima do filme poderá com facilidade evocar o paradigmático Aniki Bobó de Manoel de Oliveira.  De alguma  maneira as crianças como reais protagonistas são num sentido semelhante levadas a sério, mas enquanto Solveig Nordlund esboça a crónica, Manoel de Oliveira criava uma parábola com um sentido mais amplo e pretendia um rigor do olhar traduzido na elaboração formal do filme que não tem correspondência no de Solveig Nordlund. Se algumas sequências de Até Amanhã, Mário tem uma grande força na sua própria construção interna como o assalto ao pombal ou a primeira sequência do grupo de turistas precedidos da guia e antes a simbólica estrelícia da Madeira, outras são surpreendentemente frouxas como a do episódio sexual num quarto de hotel. Mesmo se a caractenzação através do humor do grupo de turistas funciona já os traços caricaturais da figura do padre (Canto e Castro) ou mesmo do empregado de mesa (Miguel Guilherme) não constituem uma escolha feliz.

No entanto apesar de algumas fragilidades, Até Amanhã, Mário consegue uma certa consistência numa fluidez narrativa que o cinema português nem sempre tem conseguido e que a música de José Mário Branco neste caso pontua com eficácia e com uma reminiscência dos filmes de Jacques Tati que principalmente nas sequências dos turistas não escapará ao espectador mais atento.

É natural que como aconteceu com Aniki Bobó haja protestos baseados numa certa imagem de promoção turística com que por vezes se procura esconder alguma miséria visível, mas o que não se pode negar a Até Amanhã, Mário é a sensibilidade e até o pudor com que se acerca do sofrimento, mas também do sonho e da esperança das crianças.  Solveig Nordlund teve a coragem de fazer um filme sobre a infância desprotegida, mas faltou-lhe a ambição ou os meios financeiros para cinematizar o sonho infantil nesse heróico confronto com a baleia. No entanto o que falta em cinema c compensado a quase totalmente pela magnífica presença de João Silva (Mário) a que alias Vítor Norte dá uma adequada complementaridade. Por outro lado o  cuidado posto  no  desenvolvimento  do  argumento e da montagem (da responsabilidade da própria Solveig Nordlund) não tem correspondência na direcção de fotografia entre o simplesmente mediano e o medíocre (principalmente nas cenas  nocturnas  do inicio e do final) da responsabilidade   de Lisa Hagstrand e  a  um  nível  inferior ao da generalidade dos directores de fotografia portugueses mesmo aceitando que um certo pendor neo-realista não seria muito compatível com  um  embelezamento gratuito da imagem.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 22/1/1994

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