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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Benilde Ou A Virgem-Mãe - Manoel De Oliveira (1975)

Infelizmente não são  muitas as oportunidade de falar do cinema português pela simples razão da  sua  escassa  produção.  Hoje uma  nova  pequena sala  dá-nos a  possibilidade  da  ver o último  filme de Manuel de Oliveira um cineasta português e portuense que dispensa apresentações, queremos supor. Ganha também assim novo alento a expectativa de ver exibidos de forma sistemática no Porto os filmes portugueses que se vão concluindo. E são uns poucos os que os distribuidores e exibidores nos estão a dever. 

O filme de Manuel de Oliveira é escrupulosamente baseado na peça de José Régio cujo sentido místico e quase ausência causam desde início viva surpresa (Luís de Oliveira Guimarães numa crítica à encenação teatral no D. Maria II  que teve como protagonistas Maria Barroso e Augusto de Figueiredo, que Manuel de Oliveira retoma noutros papéis, escreveu que "teria sido necessário o poder de um dramaturgo, porventura menos poeta para que deixássemos de sorrir de quando em quando já não diremos da indefinida candura de Benilde mas da lírica ingenuidade de certas cenas e de certas réplicas"). Não se julgue porém que a extrema fidelidade de Manuel de Oliveira ao texto teatral anula a sua intervenção criadora. Tematicamente ligado pelo próprio a uma trilogia de "amores frustrados" que inclui "O Passado e o Presente" e "O Amor de Perdição" (projecto que Manuel de Oliveira está de momento trabalhando), este filme retoma das longas metragens mais recentes de Manuel de Oliveira "O Acto da Primavera" e "O Passado e o Presente" não apenas as origens teatrais mas igualmente um certo  tipo de texto, uma certa ingenuidade de construção e uma certa melodia verbal. Embora as referências cristãs sejam bastante marcadas no  mundo expressivo de Manuel de  Oliveira  a  inclusão de "Beniide" na sua filmografia sublniha do texto de Régio fundamentalmente a problemática do amor desenvolvida nos eixos da loucura e da fé portanto num plano que contraria as "razões sociais" de personagens como o pai e a tia de Benilde ou o médico paralelos afinal aos personagens  de "O Passado e o Presente" e do seu mundo burguês. É nesse sentido que toda a criação narrativa e plástica de Manuel de Oliveira serve uma leitura embora a intervenção venha de filme para filme a tornar-se mais discreta mas não menos significativa.

Realmente se o texto inicial é desconcertante e o filme de Manuel de Oliveira menos rico em implicações que qualquer das suas longas metragens anteriores, não há dúvida porém que "Benilde" é a imagem de um cineasta ainda na fase ascendente da sua expressão artística. "Benilde" prolonga o estilo de construção de "O Passado e o Presente" utilizando formas narrativas menos convencionais que estruturam uma certa distanciação do espectador aqui acrescida ainda pela evidência dos estúdios de filmagens nas primeiras cenas e no último plano, processo no entanto que se apresenta em continuidade com início dos seus outros filmes (a chegada a Curalha em "O Acto da Primavera", a transposição do portão em "O  Passado e o Presente»). Esta ambiguidade dos sinais expressivos do cinema de Manuel de Oliveira é um dos pontos mais interessantes do  seu  estilo  (e cujo estudo se torna  importante  nos  actuais   debates   so bre  estética cinematográfica} e diria até  da sua  personalidade, em que a discrição é um traço relevante. Como em "O passado e  o  presente"  anotamos ainda a  importância da música (também de João Paes, mas aqui sublinhando o  fantástico e nâo a caricatura), uma certa antlnaturalidade das interpretações que  recorda  Bresson (aqui estruturada não  na dicção mas nas posturas estáticas nos planos de conjunto) e a evidência da câmara (aqui não num movimento excessivo em relaçao aos padrões convencionais mas pelo contrário em longos planos fixos que no entanto destroem a lógica suave dos campos-contracampos). Não se pode porém dizer que exista no cinema de Manuel de Oliveira aquela presença agressiva que vem pela mão da destruição das convenções. Também aqui se torna evidente uma leitura interior ao desenvolvimento e não se torna assim um deleite de investigação estética. Em "Benilde" há longos primeiros planos de personagens que observam uma acção desenrolada fora do enquadramento mas isto não é apenas o contrariar das regras habituais da narração cinematográfica mas é uma importante revolução do espaço fílmico (prolongando aliás "O Passado e o Presente") que evidencia uma chave de leitura (Manuel de Oliveira que raramente "explica" os seus filmes disse pretender em "Benilde" tornar o espectador "participante desde o começo no julgamento das diferentes posições postas em jogo no filme"). Tornar o espectador participante e juiz é o contrário do fascínio do cinema convencional, é distanciação, e correctamente Manuel de Oliveira usa o processo de nos colocar como observadores de relações semelhantes entre os personagens também eles julgando as diferentes posições postas em jogo, mas não nos identificando com os personagens no uso da câmara subjectiva vulgar na narrativa clássica do campo-contracampo (e que no filme Manuel de Oliveira apesar disso usa quando Eduardo "repara" na jarra partida ou os personagens "olham" pela janela).

"Benilde ou a Virgem-Mãe" é principalmente uma obra cinematograficamente bastante inovadora cujo ritmo vivo se imaginaria inconciliável com a encenação estática, embora não atingir a plena expressão que se adivinha no autor, e de que "O Passado eo Presente" se aproximava mais. Talvez isso suceda assim porque o filme como a peça de José Régio procura deixar abertas várias hipóteses de leitura (o louco que ronda a casa, a herança familiar doentia, a própria explicação de Eduardo ajudam a preencher uma exigência mais racionalista às lacunas de uma história duma gestação que a protagonista atribui a intervenção divina), facilitadas no caso do filme por se "supôr a acção passada nos anos trinta. Defende-se portanto o filme da ingenuidade de uma certa mística embora o sobrenatural e o fantástico mantenham um papel central no pensamento e na estética de Manuel de Oliveira, aliás como do próprio Régio. Por outro lado o filme é mais explícito que "O Passado e o Presente" em ultrapassar a mera atitude crítica (também presente mas agora surpreendentemente valorizada pelo cineasta nas suas declarações por comparação com a atitude face ao seu filme anterior) para contrapor no amor sem limites de Benilde ou talvez mais rigorosamente de Eduardo já que Benilde é o personagem motivo face ao qual os outros personagens se definem, uma proposição afirmativa face à crítica da lógica social de Etelvina e do Dr. Fabricio a procura do nome do pai para compor o caso ou a moralidade represslva do sr Melo Cantos (aliás Glória de Matos, Jacinto Ramos e Varela Silva vêem facilitadas as suas interpretações precisamento pela psicologia mais convencional dos respectivos personagens). 

"Benilde" de Manuel de Oliveira é um filme  belo  e  intrigante  que  um   público  sensível e inteligente não deverá desprezar precisamente porque  é aquilo que todo o  filme  ambiciona:  um  desafio  ao  espectador.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 22/6/1976 

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Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

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