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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Casa De Lava - Pedro Costa (1994)

MORTE APARENTE

Quatro anos depois de "O Sangue", Pedro Costa regressa, com "Casa de Lava", um cineasta amadurecido.  Até certo ponto, "O Sangue" podê-lo-ia ter deslumbrado, uma vez que foi uma primeira obra bem recebida, tanto pela crítica como pelo público, evidenciando qualidades expressivas e um espírito de geração que, no entanto, não iludiam completamente uma certa insuficiência de construção, como então assinalámos. "Casa de Lava", em certa medida, retoma a temática central de "O Sangue", mas desenvolve-a com uma surpreendente consistência, ao mesmo tempo que dá a impressão de que o cineasta se terá deixado contagiar pelo povo e pela terra de Cabo Verde, para onde o desenvolvimento da história que nos quer contar o levou. Pedro Costa não desistiu da ficção, antes a reforçou, mas mostrou-se permeável à realidade, principalmente dos rostos e das pessoas, numa sensibilidade que organiza a ficção de uma maneira poética, a partir do documental, incorporando alguma coisa do cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, desde logo de "Trás-os-Montes". "Casa de Lava" aposta numa estrutura narrativa lacunar, numa realidade que se percebe por alguns indícios, por determinados sinais, mas de que nunca se está suficientemente próximo. Logo nas imagens iniciais, Mariana (Inês de Medeiros) conversa com uma outra enfermeira colega de trabalho, ao espelho, enquanto retoca a maquilhagem. Na aparente insensibilidade dos gestos vulgares há as interrogações sobre uma mulher doente, que ambas cuidam e provavelmente está numa fase terminal. "Será uma cirrose?". "Que idade terá? Uns sessenta?". Da mulher, o espectador viu apenas uns braços estendidos com alguma violência e na ameaça da dissolução da morte que o ambiente hospitalar encena, começa a perceber-se um trabalho de descoberta da identidade do outro, que vai constituir o percurso de Mariana e de certa maneira o sentido do filme.

Mariana irá, como enfermeira, levar de regresso à sua terra um operário cabo-verdiano, em coma, em consequência de uma queda (suicídio?) num prédio em cuja construção trabalhava Leão (Isaach de Bankolé)  é  um  quase-morto,  em  certo  sentido  próximo do cadáver do pai que os jovens enterram em segredo em "O Sangue". O percurso do filme fala de uma outra cura, no plano simbólico, que é a da reintegração no seu contexto que progressivamente pelo regresso à casa, o irá despertar. Como se a morte real fosse o desacordo com o ambiente, dos imigrantes cabo-verdianos em Lisboa, e, mais profundamente, da própria colonização de uma terra inóspita, vulcânica e flagelada pela seca. Como comenta o velho tocador de violino, "mais vale morrer pequenote e nascer velho".

Mariana ir-se-á movendo numa terra estranha, onde, aparentemente, toda a gente a conhece e é esse trabalho sobre o conhecimento que o filme de Pedro Costa inteligentemente elabora. Um dos aspectos mais interessantes do filme situa-se ao nível da linguagem, em que, de certa maneira, poderíamos reconhecer ainda a sensibilidade do António Reis de "Jaime" na transição da escrita para os desenhos. "Casa de Lava" tem uma grande parte do diálogo, aliás de excelente qualidade poética, em crioulo, onde se reconhecem as palavras portuguesas, mas se perde o seu sentido global. E esse perceber não percebendo é o que caracteriza o filme e os seus personagens Como Edite (Edith  Scob) uma branca que vive na ilha e esqueceu, ou não quer lembrar o português e se exprime em crioulo  e cuja história como  a de Leão  nunca chegamos verdadeiramente a conhecer

Ela terá sido companheira de um preso político do campo do Tarrafal e ter-se-á deixado ficar em Cabo Verde (como e porquê?) sendo ela quem paga as viagens dos que querem abandonar Cabo Verde. De certa maneira também ela é uma imagem da morte, talvez pela loucura, certamente na sua presença enigmática. Dessa morte aparente que pode ser a vida e que de certa maneira, as próprias imagens iniciais do vulcão já expressavam.

Mariana devolve Leão a terra, e a vida (ou a morte?)  -  uma enfermeira é alguém que ajuda a morrer tanto ou mais que a viver -, ao passo que Edite os tira de lá e os salva (ou entrega a morte?). A imagem da morte deste filme, de certa maneira, é a mesma de "Ana", de António Reis e Margarida Cordeiro, ou de "A Ilha dos Amores", de Paulo Rocha. "Casa de lava" fica sendo um dos mais belos filmes do recente cinema português, revelando talvez o cineasta mais prometedor da geração dos anos noventa. Alicerçando-se nas interpretações excelentes de Edite Scob, Inês de Medeiros e Pedro Hestnes (os dois últimos eram já o par central de "O Sangue), Pedro Costa foge contudo da mais fácil expressão romântica, ou da aparência enganadora da sensualidade imediata dos corpos,  da música contagiante,  da imagem tropical. Como que a dizer, nas palavras sábias do velho tocador "serenatas nunca fiz".

A Roma Torres in Jornal de Notícias, 11/2/1995

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