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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Casa De Lava - Pedro Costa (1994)


REGRESSO À TERRA

A. Roma Torres, A Grande Ilusão, 18-19, Novembro/1995, pgs. 64-65 

 

O primeiro filme de Pedro Costa, O Sangue, foi recebido pelo público e pela crítica de uma forma que se diria entusiástica para uma primeira obra, não valorizando tanto a injustificada obscuridade narrativaface à qualidade expressiva dos rostos de uma nova geração, de jovens como Inês de Medeiros e Pedro Hestnes Ferreira, e de uma elaborada imagem a preto e branco da direcção de Martin Schafer.

Pedro Costa poder-se-ia ter deslumbrado com a recepção, mas o seu segundo filme Casa de Lava, que surge quatro anos depois, mostra que o jovem cineasta não se deixou enganar pelos louros mais fáceis.

É verdade que há uma linha de coerência entre O Sangue e Casa de Lava, mas o que no primeiro filme poderia ser indecisão e até desleixo é agora uma via desenvolvida com coerência e algum risco, na medida em que Pedro Costa se deixa contaminar pelo ambiente sócio-cultural cabo-verdeano (quente), sem no entanto perder um certo rigor (frio) em que se alicerça a identidade do seu cinema.

Como em O Sangue o novo filme de Pedro Costa centra-se num enterro, mas agora de certa maneira ampliando a noção de devolver à terra, como se desse lado da morte estivesse na realidade a vida, e tudo isso duma forma mais trágica, ligada ao destino, do que evidentemente metafísica.

Mariana (Inês de Medeiros), enfermeira, vai acompanhar a Cabo Verde Leão (Isaach de Bankolé), um operário cabo-verdiano em estado de coma (ou de morte aparente), após um acidente-suicídio na construção civil onde trabalha. O percurso do filme é até certo ponto o da viagem com o morto (por exemplo de Longe Daqui de João Guerra), mas é também o de um outro sentido de cura, que não é o que a medicina oferece, mas que está presente em muitas das palavras do tocador de violino ("mais vale morrer pequeno do que nascer velho"). A cura de Leão é a de um plano simbólico, da reintegração progressiva num contexto, traduzida no regresso a casa, como se a morte real fosse o desacordo com o ambiente, do trabalho imigrante em Lisboa.

A enfermeira é alguém que ajuda a morrer tanto ou mais que a vuver, como Edite (Edith Scob), magnífico retrato de mulher dorida não se sabe bem de quê, mas com certeza de um tempo de opressão política simbolizado no Tarrafal, está no plano ambíguo do anjo libertador ou do anjo da morte (ela ajuda-os a sairda ilha, mas salva-os ou entrega-os à morte?).

Como em O Sangue mas desta vez amadurecendo o caminho escolhido, o filme de Pedro Costa é voluntariamente lacunar. Aliás como o "crioulo" de grande parte do diálogo do filme, de excelente qualidade poética e até melódica. Nele se reconhecem algumas palavras do português mas o todo sôa ininteligível (e não interessa tanto saber a sua génese como linguagem cifrada de um povo oprimido). O certo é que Edite é branca, mas esquecendo ou não querendo lembrar o português, só fala "crioulo". E da sua história enigmática sabem-se só fragmentos, como afinal de qualquer moribundo - o filme começa numa conversa aparentemente despreocupada de enfermeiras em fim de turno; do desespero de umas mãos que irrompem no ecrã ficam os vagos sinais, talvez falsas aparências, "será uma cirrose?", "que idade terá?", "uns sessenta?".

Casa de Lava é um trabalho sobre a morte, a ameaça da dissolução do outro, essa passagem do efémero ao que fica, rasgado, como essa linguagem de Cabo Verde. De Pedro Costa também.

Se António Reis e Margarida Cordeiro se podem recordar logo nas imagens hieráticas do início (como em Trás-os-Montes), este trabalho de rarefacção de linguagens, como vestígios de vidas, evoca um outro filme, Jaime, onde a escrita vai perdendo sentido enquanto linguagem e se vai transformando nos expressivos desenhos, numa outra dimensão da comunicação. E da familiaridade com a morte parece recuperar-se um certo espírito do Paulo Rocha de A Ilha dos Amores, ou ainda de António Reis e Margarida Cordeiro de Ana, mas quando se chega aí sem optar pela via fácil da expressão romântica, ou da aparência enganadora da sensualidade imediata dos corpos ou da música tropical contagiante (como nas palavras sábias do tocador, "serenatas nunca fiz") a grande interrogação é: como sair de lá, na continuidade de uma obra? Recuperará Pedro Costa mais rápido que Paulo Rocha, Ou António Reis, ou Margarida Cordeiro? Em todo caso vislumbra-se aqui neste vulcão adormecido talvez o mais prometedor dos cineastas portugueses dos anos noventa. E essas promessas não se podem enterrar.

Ou se se enterram espera-se que germinem em semente.

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