top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Casa - Leonor Teles

PERDIDA POR MIL

António Roma Torres

 

Aos 31 anos Leonor Teles parece num promissor início de carreira, assinando a sua primeira longa de ficção, Casa - o lançamento em Portugal evidencia, em idioma tahi, Baan como título, dando relevo à nacionalidade da co-protagonista, para com a permanência em cartaz vir a colocar Casa entre parêntesis, enquanto internacionalmente usa simplesmente o mais directo Home -, e tendo um trabalho criativo relevante como directora de fotografia de Mal Viver/Viver Mal de João Canijo (veja-se a entrevista dada por Leonor Teles e João Canijo a Vasco Câmara em Ípsilon/Público, 12/5/2023), díptico cujo primeiro elemento teve em 2023 o Urso de Prata Prémio do Júri em Berlim, no festival onde a curta de estreia de Leonor Teles, A Balada do Batráquio, ganhara surpreendentemente o Urso de Ouro na respectiva categoria sete anos antes.

Porém Leonor Teles assinara já antes um filme de escola, Rhoma Acans – Olhos Ciganos, elaborando também a sua ascendência cigana pelo lado paterno, projectando-se na Joaquina a que o filme vai aceder, e depois Terra Franca, documentário de longa-metragem sobre Albertino, pescador do rio Tejo, na sua geografia de origem em Vila Franca de Xira, e a família dele nas vésperas do casamento de uma sua filha, para logo depois assumir claramente a ficção na curta Cães que Ladram aos Pássaros, abordando a procura de alojamento como resposta à gentrificação na cidade do Porto.

Casa é um retrato urbano de uma cidade cosmopolita, apesar de tudo em traços indefinidos que poderiam ser os de qualquer lugar, que ora reconhecemos como podendo ser Lisboa, um ponto de cruzamentos de diversas populações, dos chamadas nómadas digitais, mas também dos activistas políticos, com diferentes identidades culturais, étnicas, nacionais, e inclusivamente de género ou de diferentes modos de intimidade e trocas afectivas e sexuais; ora por magia pode ser Banguecoque, um oriente de certa forma imaginado que rapidamente nos desorienta nos hábeis falsos raccords que ligam os sincopados planos iniciais. Alguém, no entanto, subitamente nos avisa, numa noite social de fumo e álcool: “Vamos parar de fingir que somos vítimas oprimidas, todos aqui vivemos numa bolha de privilégio”. “Não chegamos lá com cartazes e conversa fiada, o problema está em como a sociedade ocidental nos vê. Afixar cartazes só vai apaziguar a consciência”.

Como na Lisboa dos anos setenta, da geração Gulbenkian do cinema português, percebe-se o cerco por todo o lado, mas os limites são mais difíceis de definir continuando os personagens de certa maneira “presos na consciência”. Pode evocar-se alguma reminiscência do cinema de António-Pedro Vasconcelos, por exemplo em pequenas coisas como o cabelo encaracolado da personagem central (Perdido por Cem), as conversas existenciais no Bar Procópio (O Lugar do Morto), ou a arquitecta estagiária como ponto de observação (Km 224).

Leonor Teles é, no entanto, já um produto de escola de cinema, de toda uma gramática de impressão de realidade e de uma problematização verosímil onde paradoxalmente já quase nada se poderá dizer, e não uma criação aprendida na literatura e na escrita crítica sobre cinema, que com Truffaut ou Godard se entendera como nouvelle vague.

Se Vasconcelos ainda dominava mal os processos de fabrico do cinema e alguns colegas de profissão e geração o quiseram mesmo convencer a não estrear o filme em sala, mas tinha a seu favor a qualidade expressiva que essa inocência garantia e o levava, nessa fase, mais que tudo a procurar seguir um Rossellini com pouca paciência para a disciplina que as escolas (re)produzem, Leonor Teles, cinquenta anos passados, tem de libertar-se de uma aparente prisão, que bem a serve no domínio técnico a afirmar-se como competente directora de fotografia em Mal Viver, de João Canijo.

As formas do cinema são assim muitas vezes a expressão de estados de alma e das incertezas do eu numa espécie de ansiedade cósmica que é a busca da consciência de um lugar no vasto mundo onde o sideral e o digital até certo ponto se conjugam.

Os personagens de Casa podem considerar-se perdidos por mil, numa fragmentação ou sobressalto que desfaz a noção de continuidade que a montagem cinematográfica, mas também a literatura escrita, tomam frequentemente como ponto de partida.

Leonor Teles parte da evidência contrária. A sua personagem, L. (como Leonor?), é interpretada por Carolina Miragaia, açoriana radicada em Almada, que tem uma carreira musical com a banda Vem Veneno com quem gravou Na Ponta da Língua em 2019 e agora apresenta o projecto exobiological, de características dissonantes que nos “transporta para um lugar eco-futurista, onde a simbiose entre natureza e tecnologia é táctil e delicada”, assinando também parte da banda sonora de Casa.

O raccord entre planos interiores estabelece-se com um exterior tailandês (imagens aliás rodadas em Banguecoque), sem nenhuma explicação ao nível da realidade (não há nenhuma viagem ao oriente), sendo apenas a abertura para a outra personagem, K. (Meghna Lall) tailandesa criada no Canadá e chegada a Lisboa depois de uma estadia no Reino Unido e com quem L. estabelece uma ligação fugidia.

A impressão de realidade transforma-se na evidência da ilusão que abre para uma significação poética e uma realidade outra ao nível do significado.

O diálogo pode cortar-se subitamente numa pergunta: “Era só isso? Ai, o que é que me vais contar?...Antes de ir embora perguntei-lhe se ele ‘tá na nossa relação…E ele o que te respondeu?”

No atelier de arquitectura ou nas obras, as imagens transparentes sobrepõem-se nos vidros como se nada fosse certo.

O próprio casal de arquitectos séniores (na realidade interpretados pelos produtores do filme, Filipa Reis e João Miller Guerra, também cineastas que há pouco apresentaram Légua, onde num lugar entre Amarante e Marco de Canavezes se materializavam os equívocos equidistantes em que se diferenciavam na obra comum os diferentes apelos para cada um deles da ficção e do documentário) anuncia ir-se separar.

K. está em constante movimento, “foge para não sentir o vazio”, como se a isso obrigasse o conflito com as suas raízes de origem ou de adopção, mas acaba por dizer que “apenas precisa de parar e ver o que acontece”.

L. vê desaparecerem o anterior namorado e depois também K., num fenómeno, mais frequente na sociedade digital que nos cerca e a que se deram já algumas conotações clínicas e se tem chamado ghosting, “quando alguém corta toda a comunicação sem dar qualquer explicação”.

É como se a todo o momento algo se possa romper e o mundo se torne o lugar inóspito e inabitável que sempre foi, ponto limite da ansiedade cósmica que de uma ou doutra forma não deixa de acompanhar o ser humano, da sociedade primitiva às actuais vivências mais complexas e sofisticadas. “Como isto era a minha casa e de repente tornou-se um sufoco”.

Aos ¾ de hora de filme, finalmente um monólogo um pouco mais demorado permite respirar: “Sinto que já não me ouves. Já nem sequer fazemos um esforço de discutir. Não olhamos um para o outro. Não me contas nada. Não me perguntas nada. Rejeitas-me. O que é que eu sou para ti?  O que é que queres que eu seja?”.

O ser e o outro. O estrangeiro em mim. No último diálogo em inglês com K., L. simplesmente responde em português: "Hoje eu fico"

Identidade é acção e portanto transitória. E é da identidade precisamente que Leonor Teles pretende falar. Uma excelente primeira obra.

1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Primeira Obra - Rui Simões

ELOGIO DA SINGULARIDADE António Roma Torres Primeira obra (exibido no IndieLisboa 2023) é um filme a vários títulos paradoxal. Na...

Comments


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page