Baseado num romance de Manuel da Fonseca, bem exemplar da literatura neo-realista portuguesa, Luís Filipe Rocha em "Cerromaior" propõe-nos uma visão do Alentejo dos anos trinta onde a serenidade no uso dos meios expressivos não esconde üma marcada violência latente que percorre todo o filme mas nâo é nunca, nem o motor do espectáculo naquilo que podia haver de influência do "western" num cinema que afinal é, até pela sua realização geográfica um cinema de espaços abertos, nem sequer o argumento mlitante tanto de uma perspectiva social que é evidente em todo o filme mas não se afunila nos conflitos mais simplistas.
Com "Manhã submersa" e agora com "Cerromaior", filme que ganhou o grande prémio do Festival da Figueira da Foz e foi recentemente exlbldo numa das sessões oficiais do Festival do Cannes, o cinema português experiencia uma via sem dúvida mais universallsta, onde o rigor narrativo constantemente domina o narcisismo de autor, qüe parece ter sido sempre uma constante do que se pode chamar cinema novo português. Aliás Luís Filipe Rocha é neste sentido um cineasta exemplarmente modesto recusando todos os truques de um exibicionismo fácil, assumindo , por vezes uma total pobreza do meios, como em "A fuga", sua anterior longa-metragem, inédita ha exibição comercial, modéstia de alguma forma ainda persistente em "Cerromaior", onde algumas sequências são já encenadas com uma segurança que é rara no cinenma produzido entre nós (penso particularmente em cenas interiores, onde os extensos movimentos de câmara nos dão, mais que um "cenário", um "tempo", sem dúvida um dos trunfos que o filme joga mais habilidosamente).
Tal como em "Barronhos - Quem Teve Medo do Poder Popular?", um dos raros filmes de intervenção em que a construção do sentido se não deixa ao efeito supostamente mágico de um microfone que interroga, e em "A Fuga", também em "Cerromaior" Luís Filipe Rocha sem escamotear as contradições e as oposições sociais,situa-se para além do jogo esterlotipado dos bons e dos maus. Há um olhar compreensivo sobre os personagens, e ao mesmo tempo algo de misterioso que parece escapar de cada um deles, o que dá ao cinema do Luls Filipe Rocha uma dlmensão interior que curiosamente não é feita de qualquer acento pslcologlsta mas de um tratamento peculiar, discreto. até distante; mas ao mesmo tempo solidário, que o cineasta parece reservar a todos os seus personagens. Recusando para si qualquer posição de instância particularmente apta ao julgamento da História, mas sem por isso esbater o filme em qualquer tonalidade de úm neutrallsmo desinteressado das lutas sociais, Luís Filipe Rocha faz de algum modo uma releltura do neo-realismo, ainda aí profundamente solidária, ampliando a visão mas praticamento sem acentuar qualquer perspectiva crítica.
"Cerromalor" não é um filme perfeito. Chega a entusiasmar na construção de algumas das sequências mas evidencia também algumas dificuldades da articulação narrativa, onde falha o sentido da unidade e da economia dos meios expressivos. No entanto, "Cerromalor" é a definitiva revelação de um cineasta português, capaz de fazer um cinema narrativo até com algum impacto popular, e revelando ao mesmo tempo uma personalidade e uma sensibilidade que não deixou do lembrar de certa maneira, Manoel do Oliveira e um tipo de cinema que. por paradoxal que a afirmação possa parecer, é precisamente o contrário do cinema do autor.
A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 1/6/1981
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