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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Cinco Dias, Cinco Noites - José Fonseca E Costa (1996)

UM OUTRO RECADO


A primeira longa metragem de José Fonseca e Costa, O Recado, estreada em 1972, se se quiser na segunda fase do "marcelismo", começava precisamente com o regresso ao país de Francisco, um "clandestino". O filme situou-se no que eu chamei o "ano Gulbenkian" pelo apoio que nessa altura a Fundação deu a uma segunda vaga do "novo cinema português", que aparecera nos anos sessenta. E no livro que publiquei sobre esse período ("Cinema português, ano Gulbenkian", ed. J S Martins, dist. Afrontamento, 1974), não por acaso escolhi como motivo de capa a personagem emblemática de "Mal-de-vivre", interpretada em O Recado por José Viana.

O Recado, juntamente com o anterior O Cerco, de António da Cunha Telles, e o posterior Perdido por Cem, de António-Pedro Vasconcelos, expressava o mal-estar de um regime já em fase agónica, evidenciando a organização clandestina do "doutor", o dilema entre a resistência e a miragem de um desenvolvimento reformista, e, inclusivamente, sinais relativamente claros da actuação da polícia política ("Leão de pedra", Beringela e "Tosco"),  de uma forma mais concreta que no restante cinema português da época. Mesmo assim, é verdade que tudo  isso está no filme de uma forma quase cifrada, atribuível então provavelmente às dificuldades que a censura colocava.

É interessante "ler" Cinco Dias, Cinco Noites, o filme, a luz da primeira obra de Fonseca e Costa, por um lado porque da  mesma  maneira se mantém o carácter relativamente ténue da óbvia conotação política, aliás na linha da própria novela de Manuel Tiago que, escrita na clandestinidade, foi no entanto publicada após o 25  de Abril - subentende-se o que por vezes se esperaria ver sublinhado -, e, por outro lado, porque há quase uma ligação circular com o início do primeiro filme, acabando aqui um outro "clandestino", André (Paulo Pires), a sair do país - e, a um outro nível, também no final de O Recado, Lúcia (Maria Cabral) sai, deixando para trás (simbolicamente?) o mapa de Portugal na parede. Há ainda, evidentemente, o facto de o filme ter  sido  produzido na fase final de uma outra miragem desenvolvimentista, a do "cavaquismo", e o estudo da obra de Fonseca  e Costa permite verificar como os seus filmes frequentemente acompanham ou sinalizam, por assim dizer, as etapas dos últimos vinte e cinco anos da realidade política portuguesa.

Cinco dias, cinco noites, mais do que a história de uma transposição clandestina, "a salto", da fronteira, por um militante político, é principalmente a história do relacionamento, paradoxal, voluntário e forçado, solidário e de oposição, entre dois homens, André e o seu passador Lambaça, excelentemente interpretado por Vítor Norte e que, de certa maneira, não deixa de evocar o "Mal-de-vivre" de O Recado (o aparente conformismo de ambos, aliás, não anula uma saudável e politicamente digna marginalidade, aliada ao eficaz sentido da sobrevivência).

Se há uma fronteira no filme, já que não se trata da aventura arriscada, e eventualmente com algum "suspense" narrativo, da passagem da fronteira, ela é entre André e Lambaça e passa pela evidência das diferenças, das desconfianças, mas também necessariamente da solidariedade feita numa caminhada comum.

É curioso que, baseando-se o filme numa novela de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal, e aliás talvez por isso a adaptação cinematográfica pareça algo reverente em excesso, narrativamente bem construída, mas dando a ideia de que o realizador não se autorizou a grandes liberdades face ao texto original, o que sobressai não é, como na estética do "realismo socialista", a mensagem social, as personagens exemplares ou a intenção edificante. Cinco Dias, Cinco Noites é mais uma novela de dúvidas do que de certezas, sem que isso anule a identidade ou as convicções das personagens e do autor. O pseudónimo parece aqui de certa maneira um heterónimo, tendo aliás Álvaro Cunhal assumido a autoria apenas duas décadas depois de publicada a novela e quando já havia abandonado a vida política mais activa. Nas múltiplas entrevistas dadas a propósito da estreia do filme, evidencia mesmo um surpreendente desejo de ficção, até na fixação da experiência da realidade portuguesa, e de certa maneira alarga a própria amplitude do discurso numa postura humanista de compreensão do outro sem a restrição do preconceito.  Isso  leva,  por exemplo, Mário  de Carvalho,  na entrevista que lhe fez na revista "Visão", a concluir na senda de um dos diálogos do filme que talvez a ideia principal seja a de que "as coisas não são o que parecem", que aliás Cunhal não confirma e coloca mesmo algumas reticências, ao mesmo tempo que na entre­ vista a Clara Ferreira Alves no "Expresso" dá largas ao  seu  desejo  de ficcionista ("A expressão  artística surge como uma necessidade e uma vontade própria,  ligada à afirmação de liberdade individual. Não se é artista por encomenda e sem sentir qualquer coisa dentro de si. E penso que qualquer pessoa tem um fundo de artista") e, por outro lado, estabelece um jogo subtil entre as duas identidades, a do autor na sua individualidade e a do líder político no que representa como face visível de um colectivo ("Tem de escolher entre um ou outro, se está a falar com Manuel Tiago " P - "E o Cunhal?" R - "Como entrevistado, fica para outra oportunidade").

Da mesma forma, em Cinco Dias, Cinco  Noites,  as personagens são sempre próximas e sempre distantes (mesmo as secundárias, como Zulmira ou as duas irmãs), cuja fronteira dificilmente se transpõe,  mostrando ao mesmo tempo qualquer coisas capaz de esbater as diferenças, uma acção, um objectivo  a cumprir,  e uma espécie de mistério  que,  apesar de tudo, sempre excede esse nível imediato e que não  é,  portanto,  funcionalizado (ainda nas palavras de Cunhal na entrevista a Clara Ferreira Alves "a atracção do mistério e do dificilmente decifrável").

Pode apontar-se ao filme, que herda da novela personagens excessivamente tipificados, numa espécie de somatório de traços de outros tantos verosímeis, reais, mas nem isso acaba por ser um obstáculo ao olhar que parece ter presidido à ficção -  os homens e mulheres que existem para lá de um ângulo de visão limitado, pela situação, pela  inexperiência, pela desconfiança. De certa maneira,  o acerto das interpretações, particularmente de Vítor Norte, Paulo  Pires, Ana Padrão, Canto e Castro, Teresa Roby e Miguel Guilherme foi o darem "existência" às personagens e esse é o mérito principal do filme, ou seja, o de permitir lidar com o mundo das convicções ("o mundo há-de ser sempre igual, aconteça o que acontecer", segundo Lambaça,  ou  "as coisas hão-de mudar, aconteça o que  acontecer",  segundo  André), sem se fechar ao subjectivo, ao que  há de significativo na experiência pessoal, ao outro lado  da  fronteira  na comunicação dos seres humanos. 

André, ao longo do filme, segue Lambaça num itinerário reiterativo, - em círculos que parecem não fazer sentido, onde se dissolve a própria noção geográfica de fronteira no surpreendente "já passámos" final, e essa outra fronteira simbólica que parece mais importante no filme não  é apenas a da compreensão do outro, como pessoa e  em  termos  de  idade (o envelhecimento é um tema recorrente no cinema de Fonseca e Costa) ou de classe social, mas também o da transformação histórica, da  revolução ou da evolução, que não é talvez  o dilema que a teoria política parece sugerir. No fundo, o sentido da história e o sentido da vida estão patentes no itinerário do filme, até essa passagem desatenta ('já passámos") ou à final travessia do rio numa barca, para um outro lado, que pode ser a utopia messiânica da qual muitas vezes o marxismo é visto como uma derivação (e curiosamente Fonseca e Costa escolheu como barqueiro o padre Fontes, de Vilar de Perdizes). Cinco Dias, Cinco Noites é um filme surpreendentemente simples e escorreito, mas no seu jogo de claros e escuros, não apenas da fotografia, mas também das elipses narrativas, deixa lugar a prolongamentos relativamente insuspeitados. Ou não fosse afinal um filme na fronteira.


A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 4/5/1996

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