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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Corte De Cabelo - Joaquim Sapinho (1995)

UM DIA NÃO MUITO ESPECIAL

 

 

A. Roma Torres, Jornal de Notícias, 9.3.1996 

(trad. ingl. JACK - Journal on Architecture and Cinema, 2, Fall 2018, pg. 53)

 

Corte de Cabelo é o filme de estreia de Joaquim Sapinho, que surge precisamente numa temporada em que vários outros filmes portugueses se apresentam ao público com uma continuidade que vai permitindo ultrapassar um crónico alheamento a que os espectadores votavam aparentemente o cinema português. E, de certa maneira, é um filme sintomático, retrato lisboeta dos anos noventa , um pouco equivalente ao filme Verdes Anos, de Paulo Rocha (nos anos 60). Joaquim Sapinho parte para o filme com uma particular atenção aos personagens, Rita (Carla Bolito), balconista nas Amoreiras, e Paulo (Marco Delgado), técnico de cinema em filmagens nas obras subterrâneas do metropolitano, e como que as pretende mostrar em bruto, significando assim a ausência de sentido da cidade e dos seus emblemas mais ou menos visíveis, que se vai esteticamente definir ao nível expressivo por uma imagem sacudida, sem dúvida influenciado pelo Maridos e Mulheres, de Woody Allen, Natural Born Killers, de Oliver Stone e Prêt-a-Porter de Robert Altman.

 

Corte de Cabelo situa-se no dia de casamento de Rita e Paulo, uma ida à conservatória, numa ausência quase total do ritual e do contexto social - excelente nessa cena o apontamento de Manuela de Freitas. Rita, de certa maneira, prepara-se para uma cerimónia que o agressivo quotidiano dos dias de hoje tende a tornar banal. Num cabeleiro vizinho da loja onde trabalha no centro comercial, ela vai cortar o cabelo e esse sinal de certa maneira põe em crise a relação com Paulo na pressa de um dia, não fora isso - não muito especial. E é dessa ausência de mediações, mais ou menos rituais, que o filme fala com um agudo sentido da diferença, não apenas nos papéis sexuais, mas nas etnias e nos próprios acentos dos modos de falar. Corte de Cabelo fala-nos da sobrevivência e uma espécie de choque constante , onde o sentido ecológico da existência humana parece seriamente ameaçado (simbolizado, por exemplo, na brincadeira que quase acaba com a asfixia com o saco de plástico do colchão, aliás também excelentemente encenada).

 

Um aspecto curioso de Corte de Cabelo é a sua expressão coreográfica tanto em "pas de deux" não apenas de Rita e Paulo, mas com alguns outros personagens secundários onde se realçará Teresa (Inês Câmara Pestana), mas também em movimentos de grupo, por exemplo na cena dos "skinheads" e a atenção a essa forma de expressão.

 

O próprio ritmo do filme permite que Corte de Cabelo surja na aparência como uma comédia, qualquer coisa de ligeiro, mesmo se trabalha com a agressividade e a falta de horizontes. De certa maneira, é um filme de sobrevivência e daí a quase completa ausência de retórica. Um gesto - o corte de cabelo - sucessivamente recriado, e alterando a imagem física e quase chegando à pele, essa fronteira também simbólica com o mundo exterior e portanto com a ameaça de invasão e de despersonalizasão, diz mais que as palavras, e acaba por traduzir-se na cantilena que se trauteia "I can hardly believe I'm real." Essa procura de realidade na crise de uma relação, não apenas com o noivo, mas com os vários personagens mais ou menos familiares que surgem na febre citadina de vinte e quatro horas de alguma intensidade, reflecte-se num corte, que de certa maneira é mutilador, embora numa aparência passível de se recuperar, que tem que ver com a imagem do corpo, com a feminilidade, e com os sinais necessários de transformações, a que um quotidiano massificante não atende.

 

O mérito de Sapinho é fazer um filme que desenvolve a capacidade de interrogação ou de inquietação sem ruminações metafísicas ou retóricas de labor intelectual. Aparentemente é um filme à flor da pele , mas sintomaticamente não deixará de se poder associar, apesar das visíveis diferenças, com dois outros filmes portugueses também em exibição, A Comédia de Deus de João César Monteiro, no registo do que João Bénard da Costa chamou a "escola portuguesa" e Adão e Eva de Joaquim Leitão, na procura do sucesso das velhas comédias lisboetas dos anos quarenta. E na ausência do rito Corte de Cabelo é também um filme à procura de um mito fundador a que os outros títulos significativamente aludem.

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