UM FILME É UM FILME
António Roma Torres, A Grande Ilusão, nº1, Outono/1984, pgs. 29-30
De onde vem esta Crónica dos Bons Malandros de Fernando Lopes?
Do livro de Mário Zambujal? Do Dinis Machado de O Que Diz Molero e da série televisiva Zé Gato? Do Kilas, O Mau da Fita de Fonseca e Costa, filme em que aliás Fernando Lopes tem uma breve aparição?
Ou simplesmente do Belarmino, realizado pelo mesmo Fernando Lopes há vinte anos, tomando igualmente como guia a visão de um jornalista, também especialista em crónicas (Baptista-Bastos), sobre a mesma cidade de Lisboa?
Venha de onde vier a inspiração deste filme, mais difícil é determinar para onde vai, isto é, quais os caminhos que aponta.
Porque uma coisa é certa: Crónica dos Bons Malandros é claramente um filme de transição.
Transição no percurso do seu autor; transição na encruzilhada do cinema português; transição nos dilemas de um país dez anos passados sobre o 25 de Abril.
Sem vanguardismos estéticos porque acima de tudo se trata de uma comédia, Crónica dos Bons Malandros é num outro sentido um filme experimental, e por isso necessariamente incompleto.
O monólogo do psiquiatra (Jorge Listopad), um dos raros trechos alheios ao texto original de Mário Zambujal, é certamente uma das chaves do filme ao propor o diagnóstico de uma "malandrice lusitana", teoria do pequeno roubo que não é crime e muito menos organizado, imagem de um país de "brandos costumes", que permanece com o sabor do Bairro Alto nas misérias e grandezas da nossa história nacional, parecendo não se deixar revolver pelas mais espectaculares mudanças na instância política, aliás como uma certa ancestralidade rural que Fernando Lopes retrata em Nós Por Cá Todos Bem no período de plena efervescência política de 1975-76.
Mas o filme recusa o discurso enfática e pretensamente esclarecido dos salvadores da pátria, convivendo com "os bons malandros" em que de alguma maneira nos podemos rever com a cumplicidade de quem tal como o narrador (Mário Zambujal) não faz parte da fita mas anda por ali, nas mesmos espaços, no mesmo cenário.
O mais desconcertante de Crónica dos Bons Malandros é o seu carácter fragmentário. De certa forma a estrutura do livro de Zambujal, traçando capítulo a capítulo a pequena história de cada um dos seus personagens, já o impunha, mas Nós Por Cá Todos Bem misturava também diferentes opções narrativas, da reportagem à coreografia, e Fernando Lopes parece dar-se bem com esse sistema.
No condicionalismo particular dum país em que um cineasta como Fernando Lopes pôde apenas fazer quatro longas metragens em vinte anos, talvez isso lhe permita ensaiar um maior número de formas de expressão em detrimento sem dúvida da unidade final de cada um dos filmes.
O texto de Mário Zambujal comportava, aliás, algumas evidentes dificuldades de adaptação ao cinema dado que era um conjunto de pequenas histórias retrospectivas que apenas confluíam no epílogo do assalto ao Museu da Gulbenkian, e além disso a acção dramática subordina-se ao desenho dos traços de cada um dos personagens, em apontamentos mais talhados a uma descrição literária do que a uma transposição em imagens.
Uma opção poderia ter sido usar o texto como um esqueleto inicial da acção, que a elaboração do argumento iria ampliar e enriquecer.
Feenando Lopes optou porém por uma fidelidade maior à estrutura de acção procurando soluções na encenação e na construção do espectáculo, mas se exceptuarmos a perseguição final, com os cascadeurs no Rossio ao som das marchas populares em evidente assincronia com o fulcro da acção, ou as coreografias do Bar do Japonês e do romance de Adelaide (Maria do Céu Guerra) e Carlos (Virgílio Castelo), nem sempre a caricatura leva a melhor sobre o neo-realismo de acento melodramático, mais evidente numa leitura ao pé do texto.
O orçamento limitado e dificuldades exteriores à produção como a impossibilidade de filmar no próprio Museu da Gulbenkian ajudam a explicar algumas soluções menos felizes como são ainda o uso pouco imaginativo do circo na história de Renato (João Perry) e Marlene (lia Gama), seguida no entanto de alguns sugestivos interiores que antecedem o assalto, ou a articulação pouco convincente da cena dos robertos na história de Pedro (Nicolau Breyner).
O circo ou os robertos , e ainda a banda desenhada, o uso de legendas à maneira do cinema mudo, o relato de futebol, as pinturas de parede, o video-jogo (que Mário Neves na elipse do assalto à Gulbenkian não chegou a pretender sugerir completamente), ou principalmente a comédia musical, constituem referências de formas narrativas populares que se integram sem dúvida bem no texto inicial de Mário Zambujal mas acabam por surgir no filme de uma forma em certa medida desorganizada, sem uma ligação capaz de definir um estilo.
O que salta à vista no entanto é que em todas essas soluções há constantemente uma plena consciência do artifício do cinema inscrita claramente no discurso do filme, o que vem já de Uma Abelha na Chuva e de Nós Por Cá Todos Bem mas desta vez assume-se no gozo completo de que o espectador se torna cúmplice.
No interior de cada sequência sente-se sempre Fernando Lopes como que a dizer-nos não apenas que tudo aquilo é filme, mas sobretudo que é somente um filme.
E essa consciência dos limites na enunciação do cinema português é também uma característica a afirmar-se na generalidade dos filmes deste início dos anos oitenta, numa fase nova que sem dúvida está aí a inaugurar-se, depois do cinema de intervenção e do narcisismo de autor.
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CLEPTOMANIA
Sabes, Silvino?
Antes de tudo queria dizer-te
Que estou surpreendido
Porque me chamaram de tão longe
Para te explicar que
Finalmente
Não tem importância.
São coisas pequenas.
Problemas pequenos
Cleptomania é uma mania qualquer
Como windsurf
Como terceira idade
Como macrobiótica
Como ténis
Como coisas de todos os dias
Que nós estamos a inventar.
Cleptomania é uma mania de certo modo
Mais agradável
Porque tu trazes a casa coisas
Que podem servir de utilidade
Pequenas coisas artesanais.
Artesanais, sabes?
Artesanato me lembra Lisboa.
Lisboa não de hoje
Mas de ontem
De anteontem.
Antiga
Dos bairros.
Bairro Alto, existe ainda?
Outros bairros
Eléctrico até à Cruz Quebrada
Com certeza já não anda.
Essas coisas antigas
Amoladores com essa musiquinha.
Todas essas coisas artesanais
É exactamente
Cleptomania
Ligada a isso
A esse artesanato
E finalmente são "brandos costumes" dessa terra
"Brandos costumes" que não têm nada
Como crime organizado.
Como economia
Como uma corrupção feita com papel selado
Como tudo industrializado
Tudo como alguma ciência
Os raios laser não chegaram ainda a Portugal
Ou se sim
Então só um pouco.
Depois não funcionam.
Não, aqui tudo é mais familiar.
Monólogo do psiquiatra,
dito por Jorge Listopad,
em Crónica dos Bons Malandros
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