top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Céu Em Chamas - Christian Petzold

COMO SE COMPÕE UMA HISTÓRIA

António Roma Torres

 

= AVISO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS* =

 

Christian Petzold, cineasta alemão com uma sólida carreira, vencedor do Urso de Prata - Grande Prémio do Júri no último festival de Berlim com Céu em Chamas (e premiado já dez anos antes com o Urso de Prata de melhor realizador com Bárbara, o primeiro filme com que se fez notar em Portugal) de certa maneira neste seu último filme ilustra de que é feita a literatura, ou mesmo o cinema enquanto escrita, abordando um pequeno grupo que passa uns dias numa praia do nordeste alemão um pouco ao jeito do francês Erich Rohmer cuja obra tinha revisto em DVD durante o período da pandemia, em que a COVID e a febre alta o pararam.

De certa maneira Céu em Chamas leva-nos a uns dias fora do mundo com um sentimento entre o tédio e a ameaça, por assim dizer, cósmica que a sua obra de uma forma geral transmite.  

O filme começa por uma avaria no carro, de dois amigos que têm então de carregar a pé as bagagens, num percurso isolado na floresta, até ao seu destino numa casa de verão junto à praia.

Leon (Thomas Schubert) é um jovem escritor em crise de inspiração na tentativa de escrever o seu segundo romance, enquanto Félix (Langston Uibel), ainda iniciante como fotógrafo de arte tenta preparar nesses dias de repouso o seu port-folio.

À chegada sabem que na casa estará Nadja (Paula Beer), uma jovem estrangeira que vende gelados na praia, a quem a família de Félix proprietária da casa cedera um quarto.

O cerco exterior parece adensar-se porque, entretanto, os incêndios florestais colocam a região em alerta.

Como no cinema de Rohmer e na filmografia anterior de Petzold, os filmes organizam-se em conjuntos, neste caso sob o mote dos elementos da natureza, o filme anterior, Undine, sobre a água, e o actual sobre o fogo, revendo, é certo, em certa medida a água, no tema do oceano que organiza a elaboração fotográfica de Félix.

É interessante como parecem preexistir algumas ligações ocultas, quase extra-sensoriais, onde se estabeleçam afinidades com os novos elementos, por vezes apenas aparentes, e outras surpreendendo porventura a expectativa traçada. Esse era o clima, aliás mais óbvio, de Undine, mas já se passava de certa maneira nos seus conjuntos anteriores, primeiro a um nível fantasmático na primeira trilogia de Cidade dos Lobos, Fantasmas e Yella, ou na segunda, mais política, de histórias de amor sob regimes opressivos, em Barbara, Phoenix e Em Trânsito.

É assim que se estabelece uma geometria rigorosa e possíveis variações, mas que a alguns momentos nos intriga. Nadjia, o terceiro elemento a rigor estrangeiro, parece inclinar-se para Félix, que afinal acaba por se ligar a Devid (Enno Trebs) um quarto personagem, nadador-salvador na praia, que supuséramos namorado de Nadja.

Do mesmo modo a chegada de Helmut (Mathias Brandt), editor mais velho e finalmente seriamente doente que vem escrutinar os progressos de Leon no seu livro, deixa o escritor incómodo quando tudo parece soçobrar na catástrofe anunciada.

Nadja, afinal a doutorar-se em literatura, chama mais a atenção de Helmut que o escritor angustiado, numa conversa de fim de tarde de eruditas referências literárias aparente premonição da catástrofe natural que se aproxima num poema romântico do século XIX que traça o destino dos que "morrem quando amam". Assim Leon vê-se preso na floresta em chamas, Félix e Devid morrem num eterno abraço como o casal de Pompeia, a doença de Helmut precipita-se para um fim anunciado e Nadja parece ter desaparecido, para tudo se superar nas provas de uma obra a editar, nova novela de Leon com fotografias de Félix e a evocação da sublimação permitida aos mortais.

A literatura, o cinema, a arte que parece legitimar-se como uma outra natureza que subsiste quando tudo parece subitamente ameaçado, é afinal o sonho febril de uma pandemia agora já distante. O cinema de Petzold parece continuar uma pesquisa existencial de grande originalidade onde se possa assegurar a sobrevivência de um credível sopro de humanidade.



*informações que revelam trechos do enredo

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Primeira Obra - Rui Simões

ELOGIO DA SINGULARIDADE António Roma Torres Primeira obra (exibido no IndieLisboa 2023) é um filme a vários títulos paradoxal. Na...

Comments


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page