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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Dias Perfeitos - Wim Wenders

AINDA A ANGÚSTIA DE GUARDA REDES

António Roma Torres

 

Este é o cineasta que há muitos anos havia declarado que o cinema tinha já contado todas as histórias e algumas décadas depois afirma que "tem horror a repetir-se" (entrevista com Francisco Ferreira, Expresso Revista, 10/6/2018 a propósito de Submersos, 2017).

Wim Wenders nasceu em 1945 no que se tornaria, por aqueles tempos e até à última década do século XX, a Alemanha Ocidental fruto de uma divisão do país por uma "guerra fria" que se estabeleceu no final da II Guerra Mundial e da derrota do nazismo, e desponta para o cinema com a magnífica geração do novo cinema alemão que surgiu com o manifesto de Oberhausen (1962).

Significativamente o seu primeiro filme, Verão na Cidade (1971), tem como protagonista alguém saído da prisão que se depara com uma nova realidade. O seu segundo filme, A Angústia do Guarda Redes no Momento do Penalty (1972), marca uma colaboração, depois continuada em Movimento em Falso (1975), As Asas do Desejo (1987) e Os Belos Dias de Arranjuez (2016), com o prémio Nobel da literatura em 2019, Peter Handke, num ambiente polémico pelo apoio do romancista e dramaturgo austríaco a Milosevic na guerra da Jugoslávia e inclusivamente com acusações de negacionismo do holocausto, além da própria suspensão da atribuição do prémio no ano anterior por um escândalo de abusos sexuais no seio da própria academia sueca.

Movimento em Falso é o filme do meio de uma trilogia conhecida como filmes de estrada (road movies) com Alice nas Cidades (1974) e Ao Correr do Tempo (1976), onde de certa maneira se caracteriza um diagnóstico do que ficou da Alemanha destroçada pela guerra e a consciência existencialista que algum cinema americano e os chamados novos cinemas europeus formulavam depois dos movimentos estudantis do final dos anos sessenta, em Berkeley (EUA) ou Nanterre (França).

É então que Wim Wenders adapta Patricia Highsmith em O Amigo Americano (1977), já agora via Tom Ripley e Dennis Hopper (de Easy Rider, 1969, realizador-actor, e a caminho do Apocalypse Now, 1979, de Coppola) e evocando subtilmente Hitchcock (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951) e a quem Wenders regressa neste Dias Perfeitos ("ela foi quem melhor retratou a ansiedade nos seus crime thrillers", comenta a funcionária da biblioteca onde Hirayama levanta os livros que lê no seu exíguo espaço doméstico). E dessa "amizade" nasce o salto para a América (Hammett, 1982, e o policial literário e cinematográfica desse país-continente míirfico e evidentemente Hollywoodesco que invadira a Alemanha, a Europa e tudo o mais, produzido por Coppola e num conhecido conflito, que se vai expressar no simultâneo O Estado das Coisas, 1982, rodado num hotel abandonado em Portugal, com produção de Paulo Branco).

E é esse ânimo que leva Wenders à sua obra-prima que foi sem dúvida Paris, Texas (1984) e o pungente diálogo, num campo/contracampo via o espelho unidireccional dos peep shows, entre Harry Dean Stanton e Nastassja Kinski.

Depois é a queda do Muro de Berlim, e antes e depois, As Asas do Desejo (1987), que também se chamou O Céu sobre Berlim, e os seus anjos, e Tão Longe, Tão Perto (1993), mediado pelo filme de antecipação do fim do século, Até ao Fim do Mundo (1991), onde Wenders se vai enrodilhando num estilo mais hermético e de slow cinema, enquanto as emoções espreitam uma sensibilidade musical bem expressa nas cada vez mais cuidadas bandas sonoras dos seus filmes.

E é numa nova Viagem a Lisboa (1994), via Capital Europeia da Cultura, que vai reflectindo a crise criativa do cinema (e do mundo ocidental?), no Patrick Bauchau que filma sem cessar e literalmente sem ver, enquanto encontra Fernando Pessoa e um certo sentido de desrealização, a que contrapõe a energia chaplinesca de Manoel de Oliveira e o sentido pós-fadista e da saudade de Teresa Salgueiro e os Madre Deus.

Daí para cá, ou já antes, talvez se possa dizer que Wim Wenders andou a deambular como o seu personagem-realizador, não apenas por Lisboa, mas por todo o mundo, com encontros documentados com cineastas - Nicholas Ray, no filme crepuscular, Nick's Movie-Um Acto de Amor (1980), Yasujirô Ozu em Tokyo-Ga (1985), Antonioni, diminuído pela doença cérebro vascular, em Para Além das Nuvens (1995); e com meios tão perto ou tão distantes como a música - Buena Vista Social Club (1999), Soul of a Man, episódio do conjunto de Scorsese, The Blues (2003), vídeos dos U2,  Talking Heads, Willie Nelson; a dança (Pina Baush) - Pina (2011); a arquitectura - Se os Edifícios Falassem (2010) e o segmento sobre a Filarmónica de Berlim de Catedrais da Cultura (2014); a moda (Yamamoto) - Notebook on Cities and Clothes (1989); as artes plásticas (que o haviam seduzido como pintor antes do cinema), explorando também o 3D - Two or Three Things I Know About Edward Hopper (2020) e Anselm, O Som do Tempo (2023); a fotografia (Sebastião Salgado) -  O Sal da Terra (2014); e a religião - Papa Francisco, Um Homem de Palavra (2018); e vários filmes de ficção talvez menores ou, pelo menos, mais desapercebidos - Crimes Invisíveis (1997), O Hotel (2000), Terra da Abundância (2004), Estrela Solitária (2005), Imagens de Palermo (2005), Tudo Vai Ficar Bem (2015), Os Belos Dias de Arranjuez (2016) e Submersos (2017);  até encontrar, de novo em Tóquio, Dias Perfeitos (2023) o seu verdadeiro regresso em grande, passados trinta anos.

E deve ter-se em conta que Wim Wenders teve ainda um papel institucional importante como principal agregador e Presidente da Academia Europeia de Cinema, entre 1996 e 2020, que atribui anualmente, desde 1988, os Felix, a pretender rivalizar com os oscars da Academia Americana.

A cidade de Tóquio de Dias Perfeitos foca de certa maneira a deslocação a Oriente do que uma elite académica do estudo de relações internacionais chama o Ocidente alargado, ou seja um centro gravitário a substituir a Europa depois da reunificação da Alemanha e das alterações geo-políticas das suas fronteiras herdadas do Tratado de Versalhes de 1919 bastante influenciado pelo presidente norte-americano Woodrow Wilson, sendo que os Estados Unidos acabaram por não assinar o tratado, no entanto num sentido relevantemente diferente do que o que resultou da intervenção americana e do Plano Marshall no final da Segunda Guerra e do domínio americano sobre a Europa e particularmente a Alemanha, a que o cinema de Wim Wenders é evidentemente sensível. Mas Tóquio, na sua arquitectura e desenvolvimento urbano, é em certo sentido a cidade do futuro, ou o futuro em cidade, no desenho da sua rede de viadutos rodoviários construída antes dos Jogos Olímpicos de 1964 até ao conjunto The Tokio Toilets instalado em 2020 no bairro Shybuia de Tóquio.

É precisamente nessa empresa que trabalha, como lavador de retretes, Hirayama (Koji Yakucho), o nome tomado como homenagem a repetidos personagens de filmes de Yasujirô Ozu (Viagem a Tóquio, A Flor do Equinócio, O Fim do Outono e O Gosto do Saké). Há qualquer coisa no personagem que o associa de imediato ao Travis (Harry Dean Stanton) de Paris, Texas, ponto determinante deste cinema geográfico de Wim Wenders. Talvez o isolamento, a perseverança, a sensibilidade espacial, mas Hirayama não caminha no deserto, não procura uma origem mítica de onde tudo aparentemente procede, não evita os relacionamentos fusionais com obstáculos artificiais. Ele simplesmente vive, age, a cada novo dia nasce (veja-se o conceito de natalidade de Hannah Arendt tão precioso para os dias de hoje).

O filme começa com um ritmo aparente lento, slow cinema hoje paradoxalmente valorizado, veja-se o inquérito aos críticos de todo mundo, a cada decénio feito pela revista britânica Sight and Sound, que entronizou sucessivamente O Mundo a Seus Pés de Orson Welles, até o ter alcançado na vertigem das alturas pelo Hitchcock de A Mulher que Viveu Duas Vezes em 2012, e finalmente ter imposto surpreendentemente em 2022 a rotina doméstica, obsessiva, suicidária de Jeanne Dielman (1975), da belga Chantal Ackerman, um pouco filiado na Cléo ameaçada pela doença de Agnès Varda em Duas Horas da Vida de Uma Mulher (no caso de Ackerman umas massacrantes 3h e 22m).

Mas rapidamente vamos percebendo que o tempo cinematográfico de Wim Wenders não é o do relógio, mas antes o da interioridade, da capacidade de manter a humanidade, numa integração que parece mecânica, a mesma rotina repetida diariamente sem alterações ou questionamentos, marcada pelas normais actividades fisiológicas, comer, beber, a lavagem de dentes matinal, e a rotina de limpeza dos toiletes públicos, que deixam no entanto espaço para o relaxamento do balneário público, a canção ouvida no bar que permite alguma intimidade controlada ao fim do dia, a leitura de Faulkner ou Highsmith, e os encontros - com o colega de trabalho Takashi (Tokio Emoto) e a namorada Niko (Arisa Nakano) e um beijo repentino sem consequências - excelente a cena da carrinha superlotada numa invasão que ele pacientemente sofre, como mínimo é também o espaço da habitação onde se sente confortável -, com o parceiro anónimo do jogo do galo escondido numa parede, com a sobrinha Aya (Aoi Yamada) em fuga de casa e a distante irmã Keiko (Yumi Asô), com a (talvez) amante Mama (Sayuri Ishikawa) e o ex-marido Tomoyama (Tomakasu Miura) com um cancro terminal, sombra da sua sombra num bailado inventado na noite da grande cidade, um pouco ao jeito de um Woody Allen de Toda a Gente Diz Eu Amo-te, a fotografia analógica do sol por trás da árvore e da revelação num tempo de um quiosque à moda antiga e a encomenda semanal enviada pelo correio.

A coincidência no cartaz com o basco Víctor Erice de Fechar os Olhos, com um semelhante percurso nas brumas do esquecimento de um cinema que não se vê - Ver ou Não Ver era o título do episódio do colectivo Mundo Invisível, onde Manoel de Oliveira colaborou com um satírico diálogo inaudível na Avenida Paulista de São Paulo  - permite-nos estabelecer um contraponto interessante.

Erice tinha feito O Espírito da Colmeia (1973), ainda num tempo franquista, com a menina Ana Torrent que Cria Cuervos de Carlos Saura logo depois levou ao estrelato com Geraldine Chaplin e agora, adulta, regressa como testemunha do passado em Fechar os Olhos, e voltara às trevas obscuras da recordação da infância em O Sul(1983), para nos surpreender mais tarde com o radioso O Sonho da Luz, O Sol do Marmeleiro(1992), pleno em pintura e poesia, numa filmografia rara que passou também por Guimarães, Capital Europeia da Cultura com o curto Vidros Partidos no colectivo Centro Histórico (partilhado com os portugueses Manoel de Oliveira e Pedro Costa e o finlandês também residente habitual em Portugal Aki Kaurismaki, agora curiosamente também em cartaz com Folhas Caídas).

Mas Fechar os Olhos, apesar da condescendência com que a crítica internacional e portuguesa o acolheu, parece tão irremediavelmente envelhecido e perdido como o seu personagem-actor, talvez fingidamente amnésico em registo de melodrama desajeitado, que começa também com um enigma oriental no filme dentro do filme com que encena a vertente convencional em que alguma nova vaga europeia se perdeu.

Dias Perfeitos é, pelo contrário, a manifestação de alegria, sóbria, comedida, de um cidadão do mundo que Wim Wenders sempre soube ser, e é ainda o sinal de vitalidade de um novo cinema alemão que morreu precocemente de múltipla overdose com o prolífico Rainer W. Fassbinder, ou se tornou "radical dreamer" com Werner Herzog, ou se remeteu ainda ao radicalismo estético e político de Alexander Kluge e Jean-Marie Straub, de Metz na Lorena franco-alemã, que a Casa de Cinema Manoel de Oliveira da Fundação Serralves em boa hora revisitou em retrospectivas integrais.

Wim Wenders, até pelas ligações a Portugal e a Oliveira no seu longo e multifacetado trajecto cinematográfico, não se afigura menos merecedor de atenção da vertente Cinemateca do Porto que a Casa de Cinema Manoel de Oliveira de certa maneira tem partilhado com o Batalha Centro de Cinema. Dias perfeitos futuros assim o permitam.



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