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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Domingo À Tarde - António De Macedo (1966)

DOMINGO À TARDE

Vida quotidiana de um médico a partir do romance de um escritor médico

 

António Roma Torres in Cinema Saúde Doença, ed Hospital São João, EPE, 2011, pgs. 45-47

 

Impotência é talvez a característica mais visível de Domingo à Tarde. Impotência na luta dos médicos contra o cancro, ligada a um tempo em que os cuidados nesta área eram mais paliativos que outra coisa.Mas também impotência de um tempo marcado pelo aborrecimento salazarista que o preto-e-branco do filme e o seu quotidiano sem esperança tão bem expressam.

O filme baseia-se numa novela de Fernando Namora, escritor médico, criada nos finais dos anos 50, ou seja, da década em que se inauguraram em Portugal os dois grandes hospitais, o Santa Maria em Lisboa (1953) e o São João no Porto (1959), obras do arquitecto alemão Herman Distel que projectara também o Pavilhão Central (1948) do Instituto Português de Oncologia na Palhavã em Lisboa onde o filme se desenrola e onde Fernando Namora fora médico. O livro foi publicado em 1961 e a adaptação cinematográfica de António de Macedo surge em 1966.

Curiosamente não é da omnipotência de um aparelho de saúde em crescimento que o filme vem falar mas da vivência sombria de cuidadores e utentes num cenário que se quer apresentar sempre à escala humana mesmo quando a dificuldade de olhar a morte o parece levar a evitar. Jorge (Ruy de Varvalho) esquiva-se a um contacto significativo com os seus pacientes e a sua assistente Lúcia (Isabel Ruth) relata com igual distância altas dadas sem perspectiva de tratamento e sem que o próprio doente se aperceba do destino que lhe está reservado.

São, nesta área médica, tempos pouco heróicos e a resignação parece imperar. A analogia com o tempo político lusitano parece evidente e, se aleitura pudesse escapar, aí está a sequência a cores no filme em que as batas verdes e o sangue vermelho para transfusão identificam o verde-rubro nacional.

Outra sequência forte, num preto-e-branco mais contrastado, é a do filme dentro do filme a que Jorge e Lúcia a dado passo assistem, de ressonância escandinava e onde se perscuta um contexto arreligioso e de condenação que amplia o sentido existencialista em que o fime se filia.

O registo do filme, e a incongruência de uma relação médico-doente pobre e sem significado, altera-se pela atracção física e o sentimento que se estabelece entre Jorge e a sua paciente Clarisse (Isabel de Castro). De certa maneira a erupção de uma relação significativa mesmo que caminhe para o abismo (como a cena da condução a alta velocidade tenta expressar) mostra como se afasta da realidade de uma relação EU-ISSO, em termos buberianos, que sempre se pode adquirir a partir de um olhar médico, mesmo que não seja a eficácia operativa que o consolide.

Domingo à Tarde é ainda um filme singular no chamado bnovo cinema português, que procura encontrar o sentido narrativo no entanto com uma espessura que o cinema anterior das décadas de 40 e 50 estava longe de possuir. As referências já não são as do início dos anos 60, do neorrealismo italiano de Verdes Anos de Paulo Rocha ou do documentarismo britânico de Belarmino de Fernando Lopes ou do encontro com as raízes populares de O Acto da Primavera de Manoel de Oliveira. Domingo à Tarde corresponde a uma segunda vaga, já mais claramente urbana e a anunciar O Cerco de Cunha Telles e, já nos anos Gulbenkian, O Recado de Fonseca e Costa ou Perdido por Cem de António-Pedro Vasconcelos.

O produtor de Domingo à Tarde, como da generalidade dos filmes do novo cinema dos anos 60, é António da Cunha Telles que abandonara o curso de Medicina da Faculdade de Lisboa para rumar ao IDHEC de Paris onde fez os seus estudos de cinema. De certa maneira o filme combina a sensibilidade estética e esotérica do realizador António de Macedo, arquitecto e autor do estudo teórico A Evolução Estética do Cinema e posterior realizador de filmes de ambiente fantástico, com a sensibilidade humanista de Cunha Telles onde a atenção ao outro, às relações EU-TU para retomar Buber, não será alheia a sua opção inicial pelos estudos médicos.

A exibição de Domingo à Tarde neste ciclo* veio mostrar a força que o filme ainda possui, quarenta e cinco anos depois da estreia. Praticamente desconhecido mesmo da parte mais cinéfila da plateia, o filme de António de Macedo soube colocar os dilemas da relação médico-doente, da necessidade de compaixão que ultrapasse a neutralidade de uma técnica por vezes até agressiva, à problemática da paixão que pode ser despertada pela proximidade e intimidade da situação clínica, com uma verosimilhança que resulta das excelentes interpretações dos actores e da criação de um ambiente dramático apesar da distância temporal dos gestos e das atitudes, a começar pelos cigarros obsessivamente presentes, naturalmente como expressão de um tempo que se queima de uma forma rápida (cf. comentários a esse respeito tão distantes no tempo como o de Luís de Pina em Cinema Novo Português, ed. Cinemateca Portuguesa, 1985, ou o de Leonor Areal em Não vi o livro, mas li o filme, org. Mário Jorge Torres, ed. Lumus, 2008). 


* o filme foi exibido no Porto (cinemas Cidade do Porto - Medeia Filmes) em 10 de Março de 2009 na inauguração no Porto do ciclo Cinema Saúde Doença, iniciado na véspera em Lisboa na Cinemateca Portuguesa com a exibição de O Menino Selvagem de François Truffaut, para comemoração dos 50 anos do Hospital de São João

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