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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Eduardo Lourenço E O Cinema

COMO FRED ASTAIRE DANÇANDO NUM TECTO

António Roma Torres

 

 

É difícil caracterizar o prazer que a leitura do XII volume de Obras Completas de Eduardo Lourenço, Segundo Paraíso: Do Cinema como Ficção do Nosso Sobrenatural, ora publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian, numa selecção e introdução de Pedro Mexia, pode dar "a um crítico com porta para a rua" (113, indico em parêntesis a página ou páginas das citações exactas do livro).

Numa colecção de obras completas, é talvez o menos "completo" dos livros de Eduardo Lourenço, tantos são os textos inéditos, mesmo inacabados, por vezes curtos extratos das suas "páginas diarísticas" (192).

Pedro Mexia na apresentação "detecta aqui uma genealogia teológica do cinema" (15), referente da ontologia fotográfica de Bazin, e promete "mesmo [n]as peças mais breves (...) algum grau de acabamento" (21). E o "maior paradoxo" é que estes textos "são muitas vezes sobre ‘outra coisa' que não o cinema, (...) assombrada pela coisa ela-mesma, ou seja, pelo cinema, pela linguagem e mitologia do cinema" (18).

O livro tem uma organização não cronológica dos textos, aliás coerente com os critérios do próprio Eduardo Lourenço em muitas colectâneas de artigos que publicou em vida, sobre literatura (O Canto do Signo) ou sobre pintura (O Espelho Imaginário), por exemplo.

Mas se verificarmos os mais antigos são, logo a abrir, O Homem como Cinema, sobre Edgar Morin e o seu O Cinema ou o Homem Imaginário, de 1956, e, talvez todos anteriores, os três textos a partir de Charlot, o "Self Made Myth", segundo José-Augusto França, em 1954. E pode perceber-se aí a génese de toda a paixão por um cinema popular no Eduardo Lourenço mitólogo, "crisma" que o próprio atribui a Manoel de Oliveira (165), numa "linhagem" que incluí "Jaime Cortesão, Agostinho da Silva, mas também Régio e Pessoa, todos corrigidos e subtilmente desviados das suas visões messiânicas, mais ou menos euforizantes pela visão de Oliveira Martins" (162).

"A mitologia é por essência popular e torna popular tudo quanto toca" (88). "A acção mítica da literatura e os heróis literários adquiriram através do cinema uma nova dimensão e um poder mitológico jamais alcançado" (89). Tudo isto aprendeu o adolescente Eduardo Lourenço em idas ao cinema na Amadora com um tio, ou mais tarde no Lys, cinema de reprise em Almirante Reis, em fins-de-semana quando estudante fora da família, no Colégio Militar, como confessara a José Carlos de Vasconcelos (Visão, 22/5/2003), imerso "[n]um universo que é para toda a gente aquilo que parece simples diversão ou duplo de vida real, sem ver que nele se inscrevem em alto-relevo as verdadeiras aventuras da vida imaginária que é a expressão da luta imemorial do homem com os seus deuses. Nesse público, só os adolescentes reconhecem a pata densa do destino, o apelo vertiginoso das profundezas da exaltação e da aventura, no rosto semelhante ao deles, mas magicamente ampliado por essa luz fabulosa do ecrã que os faz existir ‘tão real e concretamente como nos altos dos céus', essência de toda a transubstanciação, de toda a conversão do homem comum em herói e deus. Sentados na sala obscura, eles ‘são', durante um tempo fora do tempo, a sua realidade mais profunda e inexprimível, e são-no sendo o deus que na tela cumpre por eles o essencial da sua vida imaginária" (89).

E noutro texto Eduardo Lourenço admite "ter sido sobretudo entre os 11 e os 17 anos, que sem saber começou a ser americano, a sê-lo por dentro. A ser formado, ou deformado em todo o caso, por essa dimensão da vida, através de uma arte particular cuja finalidade é a de representar a vida o mais próximo possível, uma espécie de um duplo da realidade. (...) O paradoxo é que essa vida se impõe como mais interessante, mais fascinante, com uma capacidade de emoção possível superior à da própria vida." (60).

"Os filhos dos que fundaram a América e de todos os emigrantes sucessivos (...) toda essa gente vai regressar simbolicamente à Europa (...) não para ficar, mas para resolver um problema... [mas] nós precisamos de ressuscitar dos desastres sem nome (...) da Segunda Guerra Mundial, e a América reconquista a Europa a nosso pedido (...) com o famoso Plano Marshall" (64).

É interessante verificar como Eduardo Lourenço "escolhe expressamente (...) não porque o[s] considere em termos de estética - se isto pode ser definido - como exemplo de qualquer emoção (...) sublime, que nós possamos ligar à lembrança de obras inesquecíveis como tantas que povoam o nosso imaginário cinéfilo" (46), filmes como Independence Day ou New York 1999, para reflexões talvez agora mais necessárias do que algum dia o foram.

"Nós precisávamos de um céu, um refúgio portátil onde todos os fantasmas e pesadelos futuros (...) se pudessem converter em paradoxal punição. O cinema foi esse céu. Não sei ainda se é" (47). "Muito cedo se chamou ao cinema a Sétima Arte. É um pouco menos e mais que isso. É o oitavo céu." (29). Mas ter-se-á transformado numa "prótese artificialíssima destinada a restaurar uma metodologia tipicamente americana, cultivando e levando ao paroxismo a trindade de um cinema-droga do imaginário, no culto da violência gratuita, do sexo e da morte despida de toda a função simbólica" (47). "É a epopeia do desemprego imaginário da América, privada de um inimigo real ou potencial, tão útil para re-jogar sem fim a única epopeia de carácter universal - pela sua simplicidade e tipicidade - da cultura americana: o western." (...) Ou "é o fim do cinema, o fim do século de cinema para quem foi, por excelência, o sujeito dele e através dele recriou o imaginário do século XX à sua imagem? Ainda é cedo para o dizermos" (48).

"Enquanto vemos um filme [somos] seres sem morte. (...) O tempo do filme (...) é virtualmente todos os tempos, como se a objectiva fosse o olhar de Deus criando a realidade porque a olha. Como Fred Astaire dançando no tecto, suprime a lei da gravidade, a nossa viagem num tempo que nos passeia sem esforço num presente que pode coexistir sem resistência com o seu passado ou o seu fulgor é a única que realiza sensivelmente a travessia do espelho da realidade que Alice faz de olhos abertos, ludicamente e sabendo que joga" (49).

Ao ler as páginas saídas da sua "variável pluma" (175) temos a sensação que Eduardo Lourenço sobre cinema escreveu principalmente para si, sendo tantos os textos inéditos, ou publicados muito mais tarde. Para os outros terá escrito sobre literatura, pintura, história, mito. É a intimidade pública que a sala de cinema nos ofereceu (e continuará a oferecer?) que Eduardo Lourenço desfruta vendo um céu de deuses e estrelas, mítico ou cósmico, pela mão principal de Charlot e José-Augusto França, sendo "o mundo de Charlot  (...) irmão gémeo de dois mundos: um real e [um] imaginário, o primeiro o mundo do sonho, o segundo o dessa invenção aparentemente inocente que é o desenho animado" (85-98); ou Fellini e Mastroianni (75-76, 107, 125-126); Antonioni (127-129) e Robbe-Gillet (119-123), "[comparado] ao nouveau roman (...) rumo a uma autonomia do cinema após cinquenta anos de existência entre a Literatura e a Pintura"; Bergman, intrometendo-se na "entropia", do raciocínio de Sidónio Paes, em O Tempo e o Modo, à polémica Nobre-Listopad (109-118); Welles, Carol Reed e Graham Green, sabendo que "o contrário do crime não é a virtude, mas a fé, ou, em linguagem somente humana, o amor, para quem as evidências da lei ou da natureza, mesmo a irrefutável evidência da morte, não constituem o último tribunal" (101-105); David Lean, "nem Suíça, nem Londres, nem  casamento, mas igual por dentro (...) à [sua] pequena história" (81-82); e Marlyn (77-78) e Bardot (79). Ou muito português, de António Reis e Margarida Cordeiro (143), César Monteiro, um santo de Deus (149-150), Wim Wenders e Alain Tanner, na cidade branca (145-148) e João Botelho, a Oriente (151-152), ao, em todos os sentidos, imenso Manoel de Oliveira (155-181).

Do livro de Eduardo Lourenço, como ele próprio de 8 e ½, "sai-se com o sentimento de se ser um pouco menos mortal" (126).

 


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