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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Elas - Luís Galvão Teles (1997)

Os Desejos 


A obra do cineasta português Luís Galvão Teles tem sido suficientemente escassa, como com frequência sucede entre nós, e com inflexões, que dificultam descobrir-lhe a coerência interna que numa observação cuidada se reconhece.Daí que ao surgir com "Elas" (a anunciada versão inicial portuguesa intitulava-se "Os três desejos", sendo esta a tradução da versão em língua francesa com subtítulos que é a actualmente exibida) numa co-produção europeia em que nos papéis principais o único actor português é Joaquim de Almeida, e o cenário de Lisboa tem mais importância que o peso português na própria ficha técnica, seja fácil suspeitar que pouco haja de pessoal ou de caracteristicamente português no filme e tomá-lo por um produto híbrido das estratégias de produção europeia, onde a miscelânea de contribuições dos vários países com frequência leva a produtos mais ou menos estereotipados não pertencentes a lugar algum. O que também com frequência se traduz no fracasso dos próprios objectivos comerciais que parecem nortear essas políticas.No entanto a realidade pelo que respeita a "Elas" não me parece bem essa. Em primeiro lugar trata-se da quarta longa-metragem de Luís Galvão Teles e pode identificar-se em filmes aparentemente bem diferentes e correspondentes a tempos e condições de produção muito diversas, uma preocupação temática comum que é a do campo dos desejos e até se quisermos da sua radicalidade e das concessões feitas em nome de um sentido das realidades."Elas" é um bem intricado jogo de cinco personagens femininos de meia idade vivendo diferentes situações a esse nível paradigmáticas. Uma delas assina um programa na televisão e está a trabalhar sobre os desejos femininos. Um dia com uma câmara de televisão doméstica regista os depoimentos das amigas (sequência a que se sobrepõe o genérico inicial e que inteligentemente apresenta as personagens com uma excelente economia narrativa). As contradições das relações amorosas, onde a homossexualidade ou o envolvimento com parceiros mais jovens, da idade da geração dos filhos, e a consciência do envelhecimento e no limite a doença e a morte que ameaça uma das personagens, comunicam ao filme uma construção dramática sólida onde os desempenhos de Marisa Berenson, Marthe Keller, Miou Miou, e Carmen Maura valorizam os pequenos cambiantes em que cada personagem se vai definindo. Se atentarmos os três filmes anteriores de Luís Galvão Teles, "A confederação", "A vida é bela" e "Retrato de família", de certa maneira focavam-se nas fronteiras entre o desejo e a realidade, seja a respeito da revolução e da ordem política ("A confederação"), da adaptação e da realização artística ("A vida é bela") ou do sexo e das relações familiares ("Retrato de família", a partir de "O incesto" de Mário de Sá-Carneiro).O facto de "Elas" ser feito no interior de uma política de produção de maiores meios que os habituais em Portugal não limita necessariamente o projecto, só se podendo apreciar naturalmente pelos resultados. Coppola ou Scorsese para falar só de cineastas actuais fazem um cinema pessoal sem se excluírem dos quadros da produção americana mesmo quando têm de gerir alguns conflitos pontuais com os esquemas de produção. E toda a história do cinema americano e não só está cheia de exemplos desses. Quanto ao resultado o que se pode dizer é que "Elas" consegue um apreciável ritmo dramático acompanhando vários personagens, mas dando a cada um a atenção suficiente para os tornar interessantes. Apenas talvez o desempenho menos consistente de Guesch Patti de certa maneira constitui um obstáculo, já que a actriz é um ponto de ligação importante não só com as outras personagens, da sua geração ou a filha que se droga, mas com o próprio espaço das representações ou do palco, em que o seu quotidiano se passa, mas tem de certa maneira um sentido metafórico. O mesmo sucede com outros personagens como a apresentadora- realizadora de televisão ou a cabeleireira ou até a professora e a mãe.Aliás desde a sequência inicial dos depoimentos o filme joga entre a realidade e as ficções, inicialmente as do discurso, mas depois as das representações , sendo a noção de maquilhagem também recorrente no filme, para sem grandes cortes deslizar para a fantasia já visível no circo de "Retrato da família" e aqui introduzida nas sequências da dança, realização simbólica de experiências novas e de um outro olhar sobre a idade, que culmina de forma poética na reunião de todas as personagens no elevador eléctrico tão típico de Lisboa (e os eléctricos que não têm de se chamar desejo são um leit-motiv de todo o filme talvez menos pelo típico lado turístico que à primeira vista se identificará)."Elas" é um filme português que não faz da identidade cultural o seu principal foco de atenção mas esse não tem que ser o tema prioritário das cinematografias minoritárias. A identidade pessoal numa vida marcada pelo tempo que foge (pela janela como comenta Joaquim de Almeida quando propositadamente deixa cair o relógio despertador) é um tema universal a que Galvão Teles dá um tratamento mais compreensível até se se tiver em conta os seus filmes anteriores. E isso é sinal de um cinema que mesmo quando joga com convenções dramáticas que o espectador reconhecerá sem surpresas não se demite de uma reflexão e contribuição pessoais. O que não chega a acontecer na grande maioria dos filmes que chegam aos nossos ecrãs.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 2/11/1997

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