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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Estranha Forma De Vida - Pedro Almodóvar

O CANTOR, NÃO A CANTIGA

António Roma Torres

 

O título do filme de Pedro Almodóvar é o de um fado de Amália Rodrigues, Estranha Forma de Vida, cantado por Ney Matogrosso durante o genérico, num playback de um jovem cowboy de olhos azuis. Almodóvar convoca, portanto, elementos díspares para prolongar uma reflexão sobre o cinema, depois do seu último grande filme, Dor e Glória, onde o cinema era já o seu objecto de reflexão na história de um extraordinário António Banderas interpretando um cineasta, curiosamente chamado Salvador, vivendo uma velhice amargurada num quotidiano marcado pela dor e pelo consumo de potentes analgésicos.

Estranha Forma de Vida é uma curta, exibida em sala, com uma breve introdução com declarações próprias, como também fez Steven Spielberg em Os Fabelmans, como que a justificarem um período de regresso do grande cinema às salas onde verdadeiramente pertence, após o vazio que a pandemia tinha criado, ou pelo menos ampliado a um ponto que parecia insuperável, e em complemento uma longa entrevista onde explana a sua atracção por um género cinematográfico, o western, a pretexto de um seu subgénero a que região espanhola de Almeria ficou ligada nos anos 60 e 70 mas curiosamente se costuma designar de western spaghetti pela larga proeminência de directores italianos, com Sergio Leone à cabeça, e técnicos, incluindo argumentistas de renome como Bernardo Bertolucci, e actores, tudo com pseudónimos ingleses para não estragar o ambiente.

Repare-se que Almodóvar tem uma longa carreira como o autor mais importante no cinema espanhol depois de Buñuel, mas nem por isso se pode dizer que o seu cinema é alheio à regras estritas que definem um género cinematográfico, mas no caso o melodrama, de que no inicio aliás fez troça, para depois da excelente comédia, Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988) acabar por o respeitar, e conseguir atingir o mais alto relevo em Tudo Sobre a Minha Mãe (1999) e Fala Com Ela (2002), nos traços que fizeram a grandeza de Chaplin a Visconti, ou de Douglas Sirk a Fassbinder.

Depois de Voltar (2006) e Dor e Glória (2019), pontos altos em plena maturidade, dir-se-á que agora procura um cinema de câmara (no sentido musical), trabalhando o virtuosismo de um número mínimo de personagens em episódios de curta duração, que tem conseguido exibir autonomamente em sala grande, como aconteceu com A Voz Humana (2020), trinta minutos retomando o exercício teatral de Jean Cocteau várias vezes adaptado ao cinema, sem esquecer o Rossellini e Magnani do díptico O Amor (1948), e agora com Estranha Forma de Vida (2023), trinta e um minutos em tom de western evocando até o duelo a três de O Bom, o Mau e o Vilão, de Leone mas protagonizado por Clint Eastwood que apesar da imagem de duro mais tarde dirigirá e interpretará em As Pontes de Madison County um outro modelo de melodrama, que é Breve Encontro de David Lean, significativamente adaptado da curta peça Still Life de Nöel Coward. Serão eventualmente dois episódios de uma futura longa-metragem de três episódios à boa maneira dos anos 60 e 70.

Por outro lado, Pedro Almodóvar acabou por recordar agora em entrevistas que esteve para dirigir O Segredo de Brokeback Mountain que veio a dar o oscar de realização a Ang Lee em 2006, mas acabou por recusar por considerar que não teria tido liberdade numa produção de Hollywood para encenar as cenas de amor físico gay que a história original de Annie Proul, também premiada com o oscar de argumento adaptado para Larry McMurtry e Diana Ossada, pediria.

Mas curiosamente em Estranha Forma de Vida o amor homoerótico de Jake, o xerife, mais retraído, interpretado de forma excelente por Ethan Hawke, em relação a Silva (Pedro Pascal), mais sedutor em relação à fugaz intimidade que tiveram vinte e cinco anos atrás, não é mostrado explicitamente, como a introdução de Almodóvar aliás anuncia, nos planos, de excelente diálogo que precedem e sucedem o reencontro físico, onde a palavra domina e contém grande parte do erotismo expresso. Por outro lado, a evolução dramática mostra outro sentimento forte que move Silva na protecção do seu filho Joe (George Steane), acusado de um homicídio fútil e que o xerife deve prender. Aliás esse traço protector, tanto em relação ao filho cujo carácter despreza como ao xerife por ele ferido, mostra um conflito de sentimentos que enriquece sem dúvida o retrato proposto pelo filme e valoriza a expressão erótica.

Embora Pedro Almodóvar, na entrevista que é exibida em complemento do filme, mostre um profundo conhecimento do western norte-americano, ao qual pretende associar Estranha Forma de Vida, e não tanto aos westerns spaghetti rodados nos espaços amplos de Almeria que ele também usou, há um outro western europeu, neste caso britânico, mas rodado também em Espanha, que é forçoso recordar, e aliás é também um exemplo do género melodramático tão caro a Almodóvar: The Singer, not the Song, que em português se chamou A Esperança Nunca Morre, realizado em 1961 por um Roy Ward Barker vindo de realizar o estimável A Tragédia do Titanic, e onde um homoerotismo subliminar espreitava a relação entre um padre católico Keough (John Mills) persistente e Anacleto (Dirk Bogarde), um bandido que ele pretende converter e a quem acaba dando a extrema-unção num final onde os corpos mortos de ambos se entrelaçam, enquanto a loira Locha (Mylene Demongeot) parece apenas poder observar. Claro que este western, incaracteristicamente mexicano e com veículos automóveis no meio da poeira, é um série B com pouca notoriedade, mas diz alguma coisa do Reino Unido que ainda à época criminalizava a homossexualidade. Os Rolling Stones fizeram uma canção com o mesmo título do filme sem o mencionar, mas dizendo a letra: There's something wrong and it gives me that feeling/ Inside that I know I must be right; e a carreira de Dirk Bogarde nessa década e na seguinte foi em todo o caso fértil em papéis de "queerness escondida à vista de todos", no imediatamente posterior Victim e sucessivamente em O Criado, Darling, Morte em Veneza e A Segunda Dimensão

Se quisermos o filme de Pedro Almodóvar é também uma afirmação do valor do indivíduo enquanto ser único com a sua história (o cantor) e não de uma legitimação por uma opção ideológica ou por um compromisso com o grupo que o envolve (a cantiga) e isso comunica ao filme uma espécie de humanismo e até uma ideia que se aproxima do romance clássico.

Apesar de ser um filme curto, Estranha Forma de Vida depois da exposição da relação afectiva entre os dois vai adensando a narrativa em duas diferentes direcções: uma a do flashback onde o português José Condessa é o jovem Silva, sendo Jasón Fernandez o jovem Jake, numa noite em que o álcool encobre/amplia a área menos controlada das paixões; outra no presente imediato, onde o conflito se expressa em termos dramáticos, entre o privado e o público, a emoção pessoal do amor evocado e o dever da função no serviço público, e comporta sucessivos volte-faces. E curiosamente as forças vão faltando aos não assim tão novos companheiros e de lembrança em lembrança surge a recordação de juventude na esperança do que poderia ser uma vida em comum, o cuidado um do outro. "Coração independente (...) se não sabes onde vais, pára, deixa de bater, eu não te acompanho mais".

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