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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Fio Do Horizonte - Fernando Lopes (1993)

COMO NUM ESPELHO

A. Roma Torres, A Grande Ilusão, 17, Março/1995, pg. 44

 

 

O fio do horizonte é claramente inatingível. Se calhar como a ideia do "eu" que liga no tempo diversos momentos pessoais. A novela de Tabucchi é um exercício de humor e lógica ao bom estilo pessoano, e, como Pessoa, interrogando-se sobre o "eu", como dirá a personagem interpretada por Andrea Ferrol. Fernando Lopes, sem trair o mundo pessoano de Tabucchi, soma-lhe a sua própria biografia. E isso desloca a ficção dum plano abstracto, ontológico, para o testemunho pessoal, que prolonga a filmografia de Fernando Lopes, particularmente Nós Por Cá Todos Bem. Mais do que prolongar, O Fio do Horizonte vem constituir-se como chave de leitura dum mundo fílmico em certo sentido felliniano, como era já possível reconhecer nas cenas de juventude de Nós Por Cá Todos Bem.

 

A escolha de Claude Brasseur como protagonista e a semelhança física com Fernando Lopes dão, de imediato, um referente especular a O Fio do Horizonte e uma outra leitura à escolha do personagem inicial em Belarmino. Mas se o cinema é um espelho para Fernando Lopes , como Spino do mesmo modo se reverá no cadáver que lhe surge na sua actividade na morgue, não se trata de modo algum de narcisismo.

 

Pelo contrário, Fernando Lopes parece ter necessidade de exorcisar um fantasma de autodestruição. Belarmino passara ao lado de uma bela carreira, o psiquiatra (Jorge Listopad) define no monólogo de Crónica dos Bons Malandros uma espécie de pequena malandrice lusitana em que nos confinamos, e o registo trágico de Matar Saudades é claramente suicidário. 

 

O Fio do Horizonte, fala da morte como não-vida. "Spino tem medo de morrer e acha que se não viver não morrerá", dirá a protagonista. Spino jovem que ele reconhecerá morto é alguém que por casualidade escapara à morte que levara a família num acidente. De certa maneira a culpa que transporta é uma morte anunciada, que se repetirá, duas vezes em idades diferentes, das mesmas escadas dum prédio velho para o mesmo gavetão da casa mortuária.

 

O Fio do Horizonte de certa maneira fala ainda de gerações, do passado pessoal como equivalente da morte e da paternidade como relação com o futuro, em que o velho é de algum modo filho do novo.

 

Ao contrário do convívio de vários registos (o circo, os robertos, a banda desenhada, o cinema mudo, o relato de futebol, os graffitti ou o video-jogo) em Crónica dos Bons Malandros ou do relativo fracasso das cenas violentas de Matar Saudades, O Fio do Horizonte transcende o carácter fragmentário dos anteriores filmes de Fernando Lopes numa excelente organização narrativa. Para lá dos limites do tempo biográfico, a realidade é pura e simplesmente cinema onde a memória, ou seja, a ficção, organiza os seus movimentos mais enigmáticos. As coincidências (as impressões digitais, o anel no porta-chaves, as mensagens no gravador de chamadas, o fato do alfaiate judeu) não são fruto da alucinação ou do pesadelo, nem têm uma explicação naturalista, psicológica ou mística. Elas são verdadeira metafísica, não no sentido religioso, mas no espaço da decisão do narrador-cineasta. Existem apenas na lógicado discurso que é o fio do horizonte do filme e porventura da obra de Fernando Lopes. Esse limite ilimitado, como talvez soubesse Pessoa, como porventura Tabucchi sabe, é o cinema a que Fernando Lopes se entrega e que permite, aliás, encontrar o passado morto-vivo, "embalsamado" segundo Truffaut a propósito de Bazin, precisamente no enigmtico momento presente.

 

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