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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Folhas Caídas - Aki Kaurismäki

UM BREVE ENCONTRO À PORTA DO CINEMA ou OS MORTOS NÃO MORREM

António Roma Torres

 

Este belíssimo filme de Aki Kaurimäski, um cineasta finlandês que há trinta anos reside em Portugal durante os invernos, pode resumir-se numa sequência capital que mostra bem a reflexão sobre o Cinema (com maiúscula) que nos oferece, aliás, com grande precisão.

Numa das primeiras aproximações, o casal protagonista, Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), vai ver um filme de zombies, Os Mortos não Morrem (2019), de Jim Jarmush.

À porta do cinema, junto a um cartaz de Breve Encontro (1945), de David Lean, despedem-se no final, deixando-nos dar atenção a mais uns quantos cartazes nas suas costas, ao mesmo tempo que se comenta que "a grande violência justifica-se porque eles eram muito poucos para tantos zombies", por entre citações faladas de Diário de um Pároco de Aldeia (Robert Bresson)  e Bande à Part (Jean-Luc Godard), e outros cartazes de cinema que continuarão a pontuar todo o filme. Mas curiosamente não são filmes contemporâneos, supostamente no circuito de exibição, antes propõem como que uma viagem pela história do cinema.

Isto é tudo menos arbitrário e para além da inclusão fluida na narrativa fílmica, mostra que Kaurismäki é um cinéfilo e também é de cinema que ele quer falar.

Folhas Caídas é um filme sobre o cinema e sobre estar vivo, num mundo frio que o clima da zona geográfica impõe, mas projecta-se também numa sociedade industrializada repressiva em que o patronato se mostra agressivo e de poucas palavras e os personagens são despedidos por razões mais ou menos fúteis.

Ela trabalha num supermercado e é apanhada a trazer escondidos produtos fora do prazo de validade e que iriam para o lixo; ele é operário electro-mecânico e é apanhado com alcoolemia elevada num rastreio laboratorial.

De certa maneira é um percurso laboral descendente, de precariedade económica e aparentemente sem horizontes, onde os próprios tempos livres parecem mecanicamente repetitivos.

Mas eis que num bar soturno o karaoke dá abertura ao finnish tango, popular em Helsínquia, mistura da cultura local e de uma latinidade longínqua, e a esta atenção não será alheio o prolongado convívio com Portugal do realizador, e da mulher e colaboradora, Paula Oinoinen, na zona de Viana do Castelo, mas curiosamente também do director de fotografia habitual dos seus filmes, Timo Salminen, em relação a Sintra.

Note-se, porém que não é tanto o contraste, o que ele reconhece em Portugal, mas a afinidade - uma certa comunicação contida que Kaurimäski identificou em entrevista recente a Vasco Câmara (Ípsilon, Público, 12/01/2024) na seguinte forma: "os portugueses não falam muito, por isso o que eles pensam torna- se a grande questão. Os finlandeses parecem muito intelectuais porque ninguém diz uma palavra, nunca. Os portugueses parecem-se espantosamente connosco. Se num grupo de pessoas que bebe um café ou uma cerveja ninguém disser nada nos primeiros cinco minutos, os anglo-saxónicos, os franceses e os italianos dão em doidos. Os portugueses aguentam. Os finlandeses também."

Apesar dos anos que leva de prolongadas estadias em Portugal, Kaurimäski não realizou qualquer filme entre nós, se exceptuarmos o episódio O Tasqueiro, de Centro Histórico, encomenda de Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012. No ano anterior ainda pensara localizar aqui, provavelmente no ambiente portuário de Matosinhos, Le Havre (2011), mas dificuldades de produção inviabilizaram o projecto e o filme acabou realizado em França. Mas O Tasqueiro expressa bem essa cultura de observação e contenção que agora nos encanta em Folhas Caídas.

Na realidade é através da banda sonora que o filme como que aquece, deixando espreitar uma história de amor, quase oculta, numa postura contida que torna o filme muito legitimamente uma variação de Breve Encontro de David Lean - numa entrevista a Paulo Portugal Kaurismäki dizia que escrevia tangos que os seus actores interpretavam.

O filme britânico dos anos 40 contava os encontros de Alec Harvey (Trevor Howard), um médico de província que todas as quintas-feiras se desloca de comboio a uma cidade vizinha para uma reunião clínica. Ele é casado o que não impede que se vá desenvolvendo um romance, apesar de tudo contido, com uma dona de casa, Laura Jesson (Celia Johnson), também casada, que semanalmente vai às compras na mesma cidade. Eles apanham distintos comboios de regresso e os encontros naturalmente são interrompidos pela chegada do comboio dele até uma frustrada despedida final, já que Alec aceitou um novo trabalho no exterior e deixarão de se ver.

Naturalmente a quase transgressão, de um amor extraconjugal, criava uma tensão com que o puritanismo da época se confrontava e o filme acabou por ter alguns remakes, em geral medíocres, porque a evolução da moral dominante trouxe um generalizado ponto de vista mais liberal que atenuava a problemática subentendida.

O filme, porém, baseava-se numa peça em um acto, curiosamente intitulada Still Life (à letra ainda vida, mas habitualmente traduzido como natureza morta), que publicara, quase dez anos antes, Noël Coward, actor e encenador de teatro, e ocasionalmente director de cinema, protagonizando e co-realizando, aliás, o filme de estreia precisamente de David Lean, três anos antes, em 1942, ano decisivo da II Guerra Mundial, o patriótico Sangue, Suor e Lágrimas /In Which We Serve.

Noël Coward era gay, no entanto discreto aparentemente para evitar um clima que anos atrás perseguira Oscar Wilde, num Reino Unido que até aos anos sessenta criminalizara a homossexualidade, e muitos dos textos que ao longo dos anos se escreveram sobre Breve Encontro não deixavam de subtilmente estabelecer um paralelo com a clandestinidade do amor homossexual, agora recentemente evidenciado numa nova encenação da peça em 2015.

O amor fora de cena, ou, se quisermos, obsceno, ganha, no entanto, uma dimensão mais radical em Folhas Caídas, principalmente nos cenários cinzentos ou vazios, na direcção de actores inexpressiva, que evoca precisamente o cinema de Bresson, - ainda Kaurismäki na entrevista com Vasco Câmara: "Não quero que os actores pareçam moinhos de vento, a acenarem com as mãos. E não devem rir-se. Não devem falar alto. E não devem correr. E não devem sorrir muito. Não vou tão longe quanto Robert Bresson, por exemplo. Deixo-os actuarem tanto quanto quiserem, desde que sejam discretos exteriormente. No interior, podem sentir o que quiserem. A câmara está concentrada nos seus olhos. No storytelling são os olhos que fazem o trabalho." - e num humor, mais visual que narrativo, muitas vezes comparado também a Jacques Tati, mas num plano em escala mais próxima.

No fundo é à ordem do pensamento único de uma sociedade industrial avançada que o amor tem que submeter-se e a ironia do cineasta finlandês vai ao ponto de intercalar notícias no rádio acriticamente repetidas de bombardeamentos russos na Ucrânia, que são um sinal ao mesmo tempo de actualidade mas também dos limites de uma visão do mundo que simplifique em blocos do bem e do mal a ausência de alternativas da encruzilhada actual, com subtis dissincronias como ter visível um calendário de 2024 ou telefones manifestamente obsoletos. 

Há um subtil fio condutor que Kaurismäki estabelece, como a nota de 500 francos que passa de mão em mão, pessoa a pessoa, no último filme de Bresson, O Dinheiro, mas a cadeia rompe-se quando o espectador, privilegiado, acompanha o bilhete perdido onde ela anotara o número de telefone e lhe cai do bolso inadvertidamente quando saem do cinema.

Finalmente quando Holappa, dominado o álcool, sai a correr ao encontro de Ansa já perto do final, um eléctrico atropela-o e atira-o para o coma numa cama de hospital. É aí que Ansa, sabendo num encontro fortuito do amigo com quem o conhecera, o vai poder acompanhar e falar-lhe na esperança de que ele no corpo inerte a possa ouvir.

Folhas Caídas, ao contrário de Breve Encontro, vai juntar os amantes depois de todo o desencontro. Mas ironicamente o efeito é "chapliniano", pelo nome da cadela e a sugestão de Luzes da Cidade no lento afastamento da câmara no final. Pode dizer-se que é um filme perfeito.

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