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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Glória - Manuela Viegas (1999)

Inverno do nosso descontentamento

 

Em primeiro lugar é necessário saber que "Glória" de Manuela Viegas é um primeiro filme, mas é também um projecto que a autora vinha trabalhando de uma forma sistemática há muito tempo. Manuela Viegas realiza agora o seu primeiro filme mas tem já um percurso longo no cinema português, principalmente na área da montagem. O carácter lacunar da narrativa de "Glória" não é, como se poderia julgar, resultado de alguma precipitação ou de certa imaturidade. Trata-se sem dúvida de uma opção, aliás próxima de um conjunto de filmes, como, obviamente, "O sangue" (e os restantes filmes de Pedro Costa) e "Idade maior" (e também os outros filmes de Teresa Villaverde, mas também de uma certa maneira "Corte de cabelo" de Joaquim Sapinho, "Longe daqui" de João Guerra e provavelmente "Xavier" de Manuel Mozos). Manuela Viegas assinou a montagem de todos esses filmes e há entre alguns destes autores uma colaboração ao nível da escrita do argumento. Pode dizer-se que estamos perante um movimento no cinema português que vai buscar alguma inspiração a Paulo Rocha, de "Verdes anos" a "O rio do ouro", e a António Reis, de "Trás-os-Montes" a " Rosa de areia".

A proposta deste cinema tem que ver com a recusa das simplificações psicologistas, mas é forçoso também acentuar que a pesquisa que estes cineastas levam a efeito não se prende tanto com os mitos e arquétipos, para os quais se orientavam Reis ou Rocha, mas, se quisermos, talvez com uma dorida memória do neo-realismo, já sem a esperança militante que o alimentava.

Se o cinema tem sido muitas vezes o campo privilegiado da ilusão, estes filmes de alguma forma pretendem afirmar um ponto de partida bem diferente.

"Glória" mostra-nos personagens e situações que progressivamente vão ganhando consistência, sem que, no entanto, pareçam estar ao serviço de uma história. A narrativa é mesmo pouco clara em muitos dos seus pormenores, ficando o espectador surpreendido por no final saber muito mais do que aquilo que parece ser intencionalmente relatado. Os personagens raramente se explicam, os parentescos adivinham-se para além da evidência, os conflitos não seguem as regras da progressão dramática mas exprimem-se num certo estado de tensão, tudo sem cair no mais comum da construção psicologista ou social onde o espectador é cúmplice de um sentido que de alguma maneira justifica o discurso das imagens.

A rigor, mesmo quando há um evidente trabalho formal no domínio da imagem e principalmente do som, nem é a estética a referência que guia o espectador como no cinema de Paulo Rocha ou António Reis.

Este cinema é sem dúvida difícil e corajoso, não apostando muita coisa numa comunicação directa com o espectador. E, valha a verdade, talvez convenha dizer que não há ainda no cinema de Manuela Viegas um completo domínio dos meios expressivos, havendo talvez uma debilidade narrativa que não se teria de pressupor nos alicerces estéticos deste cinema.

Mas a medida do êxito que permite afirmar esta via do cinema português e esperar novas obras já num plano de mais conseguida expressão formal, o que Pedro Costa conseguiu , por exemplo, em "Casa de lava", poderá encontrar-se no facto de um filme como "Glória" não deixar facilmente o espectador indiferente ou desinteressado. Manuela Viegas consegue construir um clima que, sem dúvida, perdura para além da projecção.

O trabalho da banda sonora é um dos elementos expressivos a que Manuela Viegas dá mais atenção. Realmente se as imagens são expressivas, no clima invernoso (particularmente nas cenas do rio) e num certo isolamento dos personagens (as cenas dos lençóis) ou numa sexualidade perturbadora , muito do sentido de ameaça que se comunica no retrato dos personagens está ligado à banda sonora e ao tratamento dos ruídos (a cena da feira, por exemplo).

No trabalho desses elementos formais Manuela Viegas obviamente não procura o bonito e raramente as opções parecem conduzidas por um efeito estético imediato. Trata-se mais seguramente de encontrar um equivalente formal para um descontentamento ou uma infelicidade incompreensível que acompanha outros filmes recentes dos cineastas portugueses que lhe estão mais próximos, nomeadamente "Ossos" de Pedro Costa, ou mesmo "Três irmãos" ou "Os mutantes" de Teresa Villaverde.

Os diálogos ou mesmo a música são usualmente no cinema os veículos privilegiados da produção do sentido, e é significativo que Manuela Viegas, ao mesmo tempo que investe pouco na fala dos personagens, os deixe rodear de ruídos agrestes, mesmo dissonantes, e na maior parte dos casos não justificados no ambiente sonoro da realidade ficcionada.

Esse mundo sonoro introduz uma outra dimensão existencial, provavelmente menos racional, mas que na sua própria dissonância exprime a sobrevivência desprotegida que se associará aos retratos juvenis que o filme nos oferece.

Os comboios que não circularão mais ou os destroços chamuscados de um incêndio são elementos de um cinema que retrata uma imagem de fundo significativa sem se preocupar em construir um fio narrativo às pessoas e lugares que vai deixando identificados.

 

A.Roma Torres in Jornal de Notícias, 28/12/1999

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