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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Hotel Palace - Roman Polanski

Atualizado: 24 de jun.



O GRANDE HOTEL

António Roma Torres


O filme foi arrasado pela crítica, embora com um aplauso final de três minutos na sala, quando exibido fora de competição no Festival de Veneza em Setembro passado. No entanto Hotel Palace (The Palace, 2023) é um filme brilhante que talvez constitua um fecho brilhante na carreira de Roman Polanski, no momento dessa exibição com 90 anos feitos um mês antes.

Polanski sempre foi um cineasta controverso, mais pela sua vida do que pela sua obra. Na realidade em 1977 ele foi acusado pela justiça americana de violação sexual de uma menor de treze anos sob efeito de drogas numa suposta sessão fotográfica, tendo fugido no início de 1978 para França, onde desde então tem residência habitual, e tendo também a cidadania francesa por ter nascido em Paris ficou a coberto de uma eventual extradição, para cumprir pena, no entanto, leve para os critérios, entretanto assumidos pela sociedade. A situação foi reaberta com larga repercussão na imprensa em 2009 aquando de uma sua deslocação a um festival de cinema na Suíça, tendo conseguido, no entanto, regressar a França sem consequências jurídicas. À época o New York Times titulava uma crónica sobre o assunto, "no caso Polanski, a cultura dos anos setenta em colisão com a mudança do mundo". A recente cultura #MeToo trouxe-lhe novos problemas nomeadamente com protestos manifestos quando o seu filme imediatamente anterior, J'accuse - O Oficial e o Espião, lhe proporcionou o césar, prémio do cinema francês, de melhor realizador em 2020, embora recentemente a jovem por ele molestada, Samantha Geimer, hoje com 61 anos, tenha vindo hoje dizer que "o que aconteceu nunca foi um grande problema para mim". O filme abordava o preconceito anti-semita no célebre caso Dreyfus que mobilizou a sociedade francesa no século XIX, não se podendo dissociar a evocação da própria biografia de Roman Polanski, de ascendência judaica e vivendo no gueto de Varsóvia na infância e depois uma situação de abandono na infância quando os pais foram ambos internados em campos de concentração nazis, tendo mesmo a mãe sido morta em Auschwitz. O Pianista, outro seu filme que lhe mereceu aliás o oscar de melhor realizador em 2003, e de melhor argumento e interpretação masculina principal para Adrien Brody, aborda de uma forma magnífica a perseguição nazi dessa época na Polónia, sendo que um outro seu filme imediatamente seguinte, Oliver Twist, abordava também a infância abandonada a partir do conhecido romance de Dickens. Mas no período americano Polanski assinara em 1968 um filme de terror, A Semente do Diabo, com Mia Farrow e John Cassavetes, associando gravidez e a paranóia persecutória, que anos mais tarde O Inquilino, realizado e interpretado pelo próprio Polanski, desenvolveria com maestria, e precedera de perto o assassinato da sua mulher Sharon Tate, no oitavo mês de gestação, no célebre crime da "família" Manson, o líder de uma seita de culto apocalíptico.

Depois de ter tido uma nomeação para o oscar de melhor filme estrangeiro logo no filme de estreia depois de um considerável conjunto de curtos, A Faca na Água, no que se considerou o cinema novo de Leste Europeu, ainda na órbita da URSS, prosseguiu com Repulsa e O Beco, a partir de argumentos de Gérard Brach, até atingir o ponto mais alto dessa fase americana com Chinatown, oscar de melhor argumento (Robert Towne) e Tess, oscar de melhor fotografia (George Unsworth e Ghislan Cloquet), direcção artística (Pierre Guffroy e Jack Stephens) e guarda roupa (Anthony Powell), e já rodado em França e novamente com argumento de Gérard Brach, que repetirá em Piratas, Frenético e Lua de Mel, Lua de Fel. A partir daí se se excluir os filmes de género, o thriller, O Escritor Fantasma, alegadamente inspirado em Tony Blair encarnado no ex-James Bond, Pierce Borsnan, e o filme de terror, A Nona Porta, adaptado de Arturo Perez-Rèverte, e além dos pessoalmente sofridos O Pianista e Oliver Twist, A Noite de Vingança prenuncia o huis-clos com alguns traços sado-masoquista que culminam numa adaptação da peça O Deus da Carnificina de Yasmina Reza, e dois filmes com a mulher, Emmanuelle Seigner, Vénus de Vison, claramente referido a Sacher-Masoch, e A Partir de Uma História Verdadeira, num argumento de Olivier Assayas, crítico do período inicial de Serge Daney e Serge Toubiana na direcção dos Cahiers, e ele próprio um realizador de méritos reconhecidos.

 

Não é, portanto, uma surpresa a reflexão eventualmente aparente sobre muitos dos dramas do seu percurso existencial que parece percorrer Hotel Palace, mas sim, porventura, a energia e o espírito de divertimento, porém amargo, que o anima. Realmente o filme agarra o espectador com eficácia logo nos primeiros minutos e propõe-lhe uma espécie de balanço de vida, irónico e ligeiro, no entanto parecendo sempre encerrar um significado mais sério como acaba muitas vezes por ser a vida nestas festas de réveillon que vão marcando o calendário todos os anos. O filme escolhe, porém. com particular método um especial dispositivo de espaço e tempo. Trata-se de um réveillon numa estância de luxo nos Alpes da Suíça alemã, o Gstaad Palace, curiosamente inaugurado 110 anos antes da rodagem do filme, precisamente em Dezembro de 1913 no dealbar do ano que trará à Europa e ao mundo uma primeira guerra mundial de uma história que ainda não parece encerrada (e essa escolha serve também os propósitos metafóricos do filme). E mais que a passagem de um ano qualquer, Polanski, além do lugar, escolhe o tempo histórico, que já não é apenas o da sua vida nos seus noventa anos, mas a transição do século, ou mais precisamente do milénio, nessa espécie de momento mágico entre 1999 e 2000 (um outro cineasta suíço, mas da parte francófona, Alan Tanner, da geração de Polanski e curiosamente a iniciar-se vinte anos antes, com o curto Nice Time, no free cinema britânico, fizera em 1976 Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000).

 

O tom do filme é propositadamente ligeiro e com exagerados traços de sátira burlesca, mas nem isso é tão surpreendente em Polanski que nos dera no início da carreira os divertidos Por Favor, Não Me Morda o Pescoço e What?, como principalmente o brilhante ritmo do filme permite aguentar perfeitamente toda a frivolidade feérica do pano-de-fundo caricatural que a animação do réveillon permite.

 

Primeiro os bastidores: Hansueli Kpof (Oliver Maccuci), o concierge que se vai alcoolizando lentamente ao longo da noite e das várias peripécias que vai tendo que assistir, faz as últimas recomendações ao pessoal; na cozinha ultimam-se todos os cozinhados enquanto o chef (Teco Celio) mostra a sua liderança implacável recusando o puré por excesso de sal (talvez uma piada de Polanski premonitória dos comentários aos seus temperos de quem espera uma espécie de culinária cinematográfica?).

 

Depois vão chegando os convidados, mais e menos esperados, acomodados aos seus quartos, maiores ou mais acanhados: o secretário da embaixada (Alexander Petrov) e o seu grupo de russos e russas e um malão escondido num cofre à disposição do respectivo embaixador (Ylia Velok), chegado mais tarde e mudando os planos em função das notícias sobre as alterações súbitas na sua pátria distante (excelentes os sketches da realidade incorporados com a transcrição das sucessivas prestações televisivas de Yeltsin e Putin numa surpreendente transição de poder, a testemunhar o interesse pelo lado de lá da cortina dos polacos Polanski e o co-argumentista Jerzy Skolimowski que se notabilizou também como realizador, no tempo do primeiro ministro Jaruzelski espreitando com Moonlighting o lado de cá da cortina); Bongo (Luca Barbareschi), o actor porno decadente que já não filma mas ainda todos querem emular; o Dr. Lima (o português Joaquim de Almeida), cirurgião plástico brasileiro que já nem reconhece as faces que o seu bisturi transformou como a sua alzheimerizada esposa (Luisiana Kornuta Steffen) face a tudo o mais; e, impagáveis, Arthur William Dallas III (John Cleese), mais ou menos empalhado para não denunciar a morte real que pode deitar a perder um dos golpes em curso na órbita do anunciado bug YK2;  a decadente Constance Rose Marie de la Valle (Fanny Ardant) preocupada com os transtornos intestinais do seu caniche de estimação e sonha dormir com o canalizador (Felix Mayir); e Bill Crush (Mickey Rourke), velha vedeta do cinema, de bronze maquilhado e capacho loiro, que atrai o bancário Caspar Tell (Milan Peschel) a um desfalque em noite de bebedeira, enquanto lhe surge pela frente o checo Vaclav (Danny Exnar), como seu alegado filho.

 

Roman Polanski dirige com brio este retrato mordaz de um mundo em traje de gala, champanhe e confettis, sabendo que este efeito de carnavalização tem muito mais importância como reconhecimento de uma verdade subterrânea que as vaidades do mundo mal conseguem disfarçar. 

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