FILHOS DE CASAMENTOS IMPOSSÍVEIS
Aos sessenta anos de idade Antonio-Pedro Vasconcelos com "Jaime" assina somente a sua quinta longa-metragem de ficção. Parece ser que "Jaime" nasce também desses obstáculos da criação traduzidos também em oito anos parado depois do seu último filme.
Mas pode dizer-se que o que mais surpreende é ver como o cineasta tentou fazer um cinema capaz de interessar um leque vasto de espectadores deixando não apenas os tiques que muitas vezes se identificam com o cinema de autor e que "Perdido por cem" e "Oxalá" mostravam, mas mesmo algumas preocupações pessoais e linhas de continuidade que se notavam ainda em "O Lugar do Morto" e "Aqui d‘el-Rei".
O programa de "Jaime" (e é de salientar que se trata nitidamente de cinema com um programa) vai na linha de alguns filmes com idêntico apoio da estação de televisão SIC como "Adão e Eva" e especialmente "Tentação", ambos curiosamente dirigidos por Joaquim Leitão que em "Jaime" interpreta um dos principais papéis, Abel o pai do protagonista Jaime (Saul Fonseca), ou seja um tema social forte neste caso a exploração do trabalho infantil numa trama que embora com o ritmo da expressão do cinema valoriza a tipificação de personagens e situações de uma forma mais próxima das telenovelas.
Assim cada personagem não é tomado como único mas como representante ou exemplo de todo um vasto conjunto. E assim é que veremos aparecer todo um conjunto de personagens previsíveis desde o irmão que injecta heroína, a menina da fábrica clandestina que acaba na prostituição ou o patrão rasca com uma série de automóveis de luxo. Embora construído de uma forma um pouco mais complexa e muito bem suportado pelo desempenho do jovem Saul Fonseca, mesmo o protagonista acaba por ser um personagem por demais previsível.
Depois do neo-realismo
Filmar num contexto de pobreza levanta desde logo algumas questões no que respeita às formas já que o verosímil cinematográfico está muito ligado a outros estratos sociais. Foi isso que constituiu a novidade do neo-realismo italiano no pos- guerra. Mas evidentemente hoje já não se pode recorrer às mesmas soluções.
"Jaime" pode evocar, pelo cenário da Ribeira no Porto, "Aniki- bobó" de Manoel de Oliveira ou ainda pelo retrato infantil e pelas consequências da falta, neste caso duma moto e não duma bicicleta como instrumento de trabalho do pai, "Ladrões de bici cletas" de Vittorio de Sica. Mas naturalmente o tratamento das fornias cinematográficas e distinto (o proprio uso da cor e não do preto e branco e a cenografia tornam-se um elemento importante nas opções estéticas a considerar). Actualmente o próprio cinema norte-americano tem retratado outros ambientes sociais, às vezes num contexto do cinema independente com um grau de verosimilhança diferente, mas por vezes nas próprias fórmulas do cinema de Hollywood. Esta questão interessante está ainda em aberto e no próprio cinema português temos, por exemplo, o caso de Teresa Villaverde que em "Três irmãos" e "Mutantes" procurou encontrar uma forma de expressão diferente do clássico neo-realismo, mas também do cinema narrativo convencional.
"Jaime" é tambem um filme atento ao ambiente mas o Porto que o filme constroí na zona da Ribeira, é filmado com os olhos do exterior de maneira que frequentemente deparamos, não propriamente com o bilhete postal, mas em todo o caso com imagens já vistas como os ângulos de filmagem da ponte D. Luís ou do rio Douro.
De uma forma geral, pode dizer-se que falta ao filme um acréscimo de verdade, que valorize o plano expressivo e não só uma narrativa que se pretende apenas escorreita. E inclusivamente, não existindo no enredo ao contrário, por exemplo de "Aqui d' el-rei", uma elaboração no trabalho de argumento talvez se pudesse esperar de "Jaime" uma maior atenção ao aspecto expressivo. Tome-se, por exemplo, a cena em que Jaime se depara com o pai morto, filmada de uma forma perfeitamente banal.
Um dilema pessoal
Mas se até o próprio título "Jaime" usa um nome que apela desde logo a um personagem exterior ao mundo pessoal do cineasta, e até bem ao contrário dos ditos populares que inspiraram os títulos dos anteriores filmes de António-Pedro Vasconcelos parecendo querer dizer que o cineasta se dispôs a deixar mais de lado uma postura pessoal o certo é que o filme acaba por dar conta dos dilemas do autor mesmo que apenas de uma forma indirecta.
Curiosamente e por decisão de António-Pedro Vasconcelos a publicidade do filme fala de um miúdo empenhado na reconciliação dos pais, temática que se diria menos ligada ao contexto social descrito, e não da exploração do trabalho infantil.
A realidade desse miúdo, que trabalha de noite em empregos clandestinos enquanto de dia vai às aulas, não estará completamente alheia ao trabalho suplementar que se exige a um cineasta em Portugal, e os pais cujo casamento impossível ele quer recuperar podem sugerir também essa dupla felicidade de um cineasta que quer conquistar o público mas não pode esquecer alguns princípios da sua própria cultura cinematográfica. Ou seja, no plano da ficção do filme, por um lado a sedução de quem é obrigado a vender e talvez vender-se e tem que procurar o dinheiro, desde o patrão do supermercado onde trabalha ao homem do talho mais endinheirado a que no final se submete, como é o caso da mãe do rapaz, ou por outro lado uma certa pureza e ingenuidade que se traduz duma dificil sobrevivência e numa solidão de quem continua a pescar sem saber quando pode ser produtivo, como se passa com o pai.
Mas o que falta no filme é a capacidade de apontar na sua própria construção diferentes níveis de leitura o que não seria necessariamente o mesmo que fazer um filme hermético que afastasse uma larga faixa do público.
A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 27/4/1999
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