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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Jaime - António-Pedro Vasconcelos (1999)

FILHOS DE CASAMENTOS IMPOSSÍVEIS 

 

Aos sessenta anos de idade  Antonio-Pedro Vasconcelos com "Jaime" assina somente a sua quinta longa-metragem de fic­ção. Parece ser  que "Jaime" nas­ce também desses obstáculos da criação traduzidos também em oito anos parado depois do seu último filme.

Mas pode dizer-se que o que mais surpreende é ver como o ci­neasta tentou fazer um cinema capaz de interessar um leque  vas­to de espectadores deixando não apenas os tiques que muitas ve­zes se  identificam com o cinema de autor e que "Perdido por cem" e "Oxalá"  mostravam, mas mes­mo algumas preocupações pes­soais e linhas de   continuidade que se notavam ainda em "O  Lu­gar do Morto" e "Aqui d‘el-Rei".

O programa de "Jaime" (e é de salientar que se trata nitida­mente de cinema com um pro­grama) vai na linha de alguns  fil­mes com idêntico  apoio da esta­ção de televisão SIC como "Adão e Eva" e especialmente "Tentação", ambos curiosamente dirigidos por Joaquim Leitão  que em    "Jaime" interpreta um dos principais papéis, Abel o pai do protagonista  Jaime (Saul Fonse­ca), ou seja um tema social for­te neste caso a exploração do trabalho infantil numa trama que embora com o ritmo da ex­pressão do cinema valoriza a ti­pificação de personagens e situ­ações de uma forma mais próxi­ma das telenovelas.

Assim cada personagem não é tomado como único mas como representante ou exemplo de todo um vasto conjunto. E assim é que veremos aparecer todo um conjunto de personagens previ­síveis desde o irmão que injecta heroína, a menina da fábrica clandestina que acaba na prostitui­ção ou o patrão rasca com uma série de automóveis de luxo. Embora construído de uma for­ma um pouco mais complexa e  muito bem suportado pelo de­sempenho do jovem  Saul Fonse­ca, mesmo o protagonista  acaba por ser um personagem  por de­mais previsível.


Depois do neo-realismo

Filmar num contexto de pobreza levanta desde logo algumas questões no que respeita às for­mas já que o verosímil cinema­tográfico está muito ligado a ou­tros  estratos sociais. Foi isso que constituiu a novidade do neo-realismo italiano no pos- guerra. Mas evidentemente hoje já não se pode recorrer às mes­mas soluções.

"Jaime" pode evocar, pelo ce­nário da Ribeira no Porto, "Aniki- bobó" de Manoel de Oliveira ou ainda pelo retrato infantil e pelas consequências da falta, neste caso duma moto e não duma bicicleta como instrumento de trabalho do pai, "Ladrões de bici­ cletas" de Vittorio de Sica. Mas naturalmente o tratamento das fornias cinematográficas e dis­tinto (o  proprio uso da cor e não do preto e branco e a cenografia tornam-se um  elemento impor­tante nas opções estéticas a considerar). Actualmente o pró­prio cinema norte-americano tem retratado outros ambientes sociais, às vezes num contexto do cinema   independente    com um grau de verosimilhança dife­rente, mas por vezes nas própri­as fórmulas do cinema de Holly­wood. Esta questão interessan­te está ainda em  aberto e no próprio cinema português te­mos, por exemplo, o caso de  Te­resa Villaverde que em "Três  ir­mãos" e "Mutantes" procurou encontrar uma forma  de  expres­são diferente do clássico neo-realismo, mas também do cinema narrativo convencional.

"Jaime" é tambem um filme atento ao ambiente mas o Porto que o filme constroí na zona da Ribeira, é filmado com os olhos do exterior de maneira que fre­quentemente deparamos, não propriamente com o  bilhete pos­tal, mas em todo o caso com imagens já vistas como os    ân­gulos de filmagem da ponte D. Luís ou do rio Douro.

De uma forma geral, pode dizer-se que falta ao filme um acréscimo de verdade, que valo­rize o plano expressivo e não só uma narrativa que se pretende apenas escorreita. E inclusivamente, não existindo no enredo ao contrário, por exem­plo de "Aqui d'  el-rei", uma ela­boração no trabalho de argu­mento talvez se pudesse espe­rar de "Jaime" uma maior aten­ção ao aspecto expressivo. Tome-se, por exemplo, a cena  em que Jaime se depara com o pai morto, filmada de uma forma perfeitamente banal. 


Um dilema pessoal

Mas se até o próprio título "Jai­me" usa um nome que apela desde logo a um personagem exterior ao mundo pessoal do ci­neasta, e até bem  ao   contrário dos ditos populares que inspira­ram os títulos dos anteriores  fil­mes de António-Pedro Vascon­celos parecendo querer dizer que  o  cineasta se dispôs a dei­xar mais de lado uma postura pessoal o certo é  que o filme acaba por dar conta dos dilemas do autor mesmo que  apenas de uma forma indirecta.

Curiosamente e por decisão de António-Pedro Vasconcelos a publicidade do filme fala de um miúdo empenhado na reconcilia­ção dos pais, temática que se di­ria menos ligada ao contexto so­cial descrito, e não da explora­ção do trabalho infantil.

A realidade desse miúdo, que trabalha de noite em empregos clandestinos enquanto de dia vai às aulas, não estará completamente    alheia ao trabalho suplementar que se exige a um cineasta em Portugal, e os pais cujo casamento impossível ele quer recuperar podem sugerir também essa dupla felicidade de um cineasta que quer con­quistar o público mas não pode esquecer alguns princípios da sua própria cultura  cinematográ­fica. Ou seja, no plano da ficção do filme, por um lado a  sedução de quem é obrigado a vender e talvez vender-se e tem que  pro­curar o dinheiro, desde o patrão do supermercado onde trabalha ao homem do talho mais endi­nheirado a que no final se sub­mete, como é o caso da mãe do rapaz, ou por outro lado uma certa pureza e ingenuidade que se traduz duma dificil sobrevi­vência e numa solidão de quem continua a pescar sem saber quando pode ser produtivo, como se passa com o pai.

Mas o que falta no filme é a capacidade de apontar na sua própria construção diferentes níveis de leitura o que não se­ria necessariamente  o  mesmo que fazer um filme hermético que afastasse uma larga  faixa  do público.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 27/4/1999 

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