"Kilas, o mau da fita" é o resultado de uma aposta num cinema português popular escolhendo para cenário um meio marginal lisboeta que um pouco na sequência deste projecto de Fonseca e Costa que esteve parado um ano por dificuldades de produção, interessou também a literatura ("Crónica dos bons malandros" de Mário Zambujai) e a televisão ("Zé Gato" do Dinls Machado e Rogério Ceitil).
Trata-se por outro lado, no final da década de um ciclo do próprlo cinema português quo se fecha. Depois da uma esperança critica na pseudoliberalização marcelista e na arrancada da Gulbenkian (momento em que Fonseca e Costa roda a sua primeira longa metragem "O recado" que retratava, embora implicitamente mas com algum desencanto a opressão em que restava apenas "hibernar para aí aos ventos e às pedras, deixando crescer a raiva à espera que a raiva rebente») o de toda a procura algo desencontrada de um cinema de intervenção que acompanhasse com entuslasmo os passos da Revolução ("Os Demónios de Alcácer Quibir" foi a proposta de Fonseca e Costa algo céptlca consciente de que "isto não vai com cantigas pois malteses ou não seremos sem pre a força explorada enquanto a raiva não se transformar em força organizada"), o cinema português opta agora pelo registo mais simples do melodrama ou da comédia directa num ambiente «kitsh» controlado em "Kilas" ou "A culpa" ou por uma intenção mais universalista inspirada na literatura em "Manhã submersa" ou "Cerromaior".
O terceiro filme de Fonseca e Costa, "Kilas, o mau da fita" é entretanto, e um pouco como sucedera já com "O recado" um novo olhar sobre a capital mas agora não já com a preocupaçâo de pintar o tom naturalista que Cunha Telles escolheu no rosto de Maria Cabral com os traços de Antonloni mas evocando a memória cinematográfica portuguesa, que vai da encenação das comédias dos anos quarenta, de onde sai Mllu na personagem da Madrinha, à reportagem do "Belarmino" dos anos sessenta, fugidiamente captado Fernando Lopes no grupo que o Major persegue filmado num "grau zero da escrita clnematográfica" que é o documento, neste caso de simples espionagem. Alias é sempre do cinema que se trata sejam os "posters" de Rita Hayworlh, que inspiram a "Pepsi Rita" interpretada por Lia Gama, ou de Bruce Lee, sejam as sessões da cinema onde se exibem fitas portuguesas "sempre tão chatas" como se díz nos diálogos ironicamente e para que o presente filme constitui também uma proposta de solução.
Assim mesmo Fonseca e Costa move-se como nos seus filmes anteriores num certo gosto do narrativo que se não deixa seduzir pelas experiências mais cerebrais no domínio da linguagem cinematográfica. Trata se de contar uma historia no meio de rufias e chulos que encerra em si no entanto um certo simbolismo do parasitlsmo lusitano que a Revolução não venceu. Como "O recado" e "Os demónios de Alcácer Quibir", "Kilas" é ainda um testemunho cifrado sobre um dado momento da realidade política portuguesa. Kilas (Mário Viegas) e Tereno (Luís Lello) lutam pelo poder no seu pequeno grupo enquanto o Major (Lima Duarte) os envolve numa outra luta pelo poder feita de ataques bombistas e de intimidações justificadas por um discurso deslizanteinente direltista (da social democracia à ditadura?) que legitima a democracia "enquanto" ou "desde que os comunistas não ganhem no jogo dos votos".
"Kilas" é o primeiro filme de Fonseca e Costa cuja acção se situa depois do 25 da Abril e também depois do 25 de Novembro aliás sem as excessivas lamentações de que tem abusado algum cinema português. Talvez por isso a referência à clandestmidade, constante no cinema de Fonseca e Costa, ganha agora novos matizes. Nada sabemos do grupo que é vigiado a não ser através das apressadas imagens cinematográficas de amador e o submundo de Kilas e de Tereno não tem a nobreza de personagens como Francisco ou Mal-de vivre de "O recado" ou como os Malteses ou Camolas de "Os demónios de Alcácer Quibir". Não se tratã de reslstência digna mas em última análise ineficaz, de um tempo "da raiva a crescer", mas de um fenomeno que talvez diga res peito às novas estruturas democráticas onde a marginalidade é mais uma consequência que uma opção. Ainda assim a luta entre Kilas e Tereno na sombra sinlstra das instruções manipuladoras do Major, não é apenas uma imagem de luta pelo poder no outro lado da nossa pseudo epopeia revolucionaria, mas encerra também um certo valor moral na recusa de Kilas, apesar disso responsável pelo compromisso inicial com o Major. A derrota final de Kilas é a afirmação da impossibilidade de inverter o processo desencadeado, mas também mais uma vez o pendor derrotista de Fonseca e Costa para o qual a imagem final de Lia Gama não é contraponto suflcilente.
A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 6/3/1981
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