top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Lobo E Cão - Cláudia Varejão (2022)

NO SONHO DA EXISTÊNCIA

António Roma Torres

 

Há talvez um equívoco sobre o percurso cinematográfico de Cláudia Varejão que o futuro poderá deixar ver a outra luz. Lobo e Cão surge dez anos depois de Luz da Manhã, a última da trilogia de curtas-metragens de ficção com que iniciou a carreira e que tinha tido em Um Dia Frio o seu verdadeiro ponto alto. Depois circunstâncias várias e principalmente uma imensa curiosidade e vontade de investigar levaram-na por sucessivas experiências no documentário, muito especialmente, mas não só, em Ama-San e Amor Fati que tiveram estreia nas salas de cinema. A excelente qualidade de todos esses filmes fizera parecer que seria por aí que toda a carreira de Cláudia Varejão estava destinada a desenvolver-se, podendo aparentemente considerar-se as curtas como exercícios de escola, pese embora evidenciassem uma segurança surpreendente no domínio da gramática da ficção cinematográfica.

Lobo e Cão, por isso, surpreende e obriga a um movimento em todo diferente da opção estética que Cláudia Varejão esboça no próprio filme. Em vez do plano próximo que encerra, grande parte do tempo, as personagens num limite fixo e como que as cerca no efeito de ilha vulcânica tão típico do cenário açoriano, acentuado em alguns passos pela aproximação por estreitos corredores ou caminhos algo confusos ou indefinidos, a crítica, ou o mero espectador, é obrigada a recuar a um espaço de maior abertura do ângulo que permita uma vista de conjunto, que é de toda a forma também um recuo no tempo biográfico da autora e da construção da sua obra, se cada filme não é em todas as circunstâncias singular e afinal avesso às afinidades que a política de autores e depois a inflamada defesa dos cinemas novos talvez abusivamente impuseram na cultura cinematográfica no milieu Cahiers du Cinéma, afinal já velho de mais de meio século, mas, todavia, bastante influente.

Lobo e Cão é, de uma forma mais ampla ou simbólica, um filme claramente insular, mas numa zona de indefinição crepuscular - "entre cão e lobo" é uma expressão consagrada em particular em língua francesa, associada habitualmente ao entardecer, mas tomada também, paradoxalmente, por Sá de Miranda numa das suas poesias esparsas, "no meio do claro dia andais entre lobo e cão". Zona que é também de indiferenciação, como diz ainda a autora, "um filme entre: entre a terra e o mar, a noite e o dia, o feminino e o masculino, o real e o sonho. Entre ficar ou partir".

O tempo do filme é o da adolescência, e do adulto emergente, expressão encontrada para o que na nossa civilização se começa a confundir numa longa transição que por vezes parece inacabável. Mas esse tempo existe, enquanto a eternidade não. O tempo são chegadas e partidas, reais ou sonhadas, esperanças e lutos que envolvem as três personagens principais: Ana, Ana Cabral num belíssimo desempenho e é, se quisermos, o ponto central em torno do qual o filme gira; Luís, o seu melhor amigo, Ruben Pimenta excelente também num mundo de sombra que privilegia a maquilhagem, a encenação, o ritual, religioso ou não, que simultaneamente o expõe e protege; e Cloé, Cristiana Branquinho vinda de fora, dum Canadá exterior para que todos no final partem, deixando Ana só, embalada na canção emblema de Cria Cuervos, de Carlos Saura, crónica da asfixia franquista já no final dos anos setenta de um país vizinho ainda não libertado, pelos olhos de uma miúda, tão criança, tão adulta, como são todos os processos assíncronos de crescimento. Porque te vas - por vezes erradamente tomada como uma interrogação, é a canção usada, neste prazer da ficção a que Cláudia Varejão quis voltar, de forma não diegética, como um comentário no plano sonoro ao clima de despedida entre Ana e Luís para ficar em surdina na própria cena quando a protagonista retira o auricular. Saura filmara a Ana Torrent de 8 anos, mais contida que triste, a pôr a canção, que, anterior ao filme, não tinha sido no imediato um sucesso comercial, a tocar no gira-discos portátil enquanto a mãe numa tarde de evasão a deixa só com as duas irmãs num andar de classe alta madrilena. Este é o plano existencial que Cláudia Varejão contém, como condição da narrativa, num cinema de prosa e do prazer do guião, alinhado com o extraordinário olhar desta outra Ana, dez anos mais velha, indecisa entre ficar ou partir. 

Mas Rabo de Peixe é uma pequena povoação emblematicamente pobre, ilha social dentro de outra ilha, São Miguel, cenário de certa forma inóspito onde as contradições se podem testar quase no limite da explosão destruidora, um pouco como as características vulcânicas da terra em que o filme, todavia não se detém, antes evita o pitoresco superficial de um olhar turístico. Pelo contrário, deixa ficar de uma forma quase encriptada em duas cenas que pontuam o elemento dramático disruptivo, a droga flutuando na água e dando à costa pela calada da noite, memória de um acontecimento real ocorrido em Junho de 2001 que mostrou que nem uma ilha no meio do oceano constitui um lugar impermeável ao exterior. Esse episódio de uma enorme quantidade de cocaína, deitada ao mar a partir do iate de um traficante em apuros, como que revolucionou os costumes da terra sem lhe mudar a natureza, para ser agora eventualmente domesticado numa série do anti-cinema marca Netflix que também este ano começou a ser gravada.

Em grande parte das cenas o filme não se demora, num domínio da elipse que é um elemento central de fascínio do cinema de Cláudia Varejão, narrativa expedita de quem vai desfiando a meada, várias histórias entrevistas, mas na verdade nunca inteiramente contadas, como naquele fim de aula confuso de fim de ano, paradigmático de outros finais em que a escolaridade é fértil, com os alunos a tirar as suas máscaras de lobos ou outros animais selvagens enquanto se arrumam, para ir de férias, os estudos de um texto tão suave como qualquer exercício escolar a que falta contexto com a professora a comentar "com essa nota não vais a lado nenhum", que lembra Kes - Os Dois Indomáveis de Ken Loach ou Bando de Raparigas de Céline Schiamma no enfrentamento da vida activa ou ociosa deixada a escola.

E, no entanto, entre uma carnavalização polifónica mais ou menos ritual, de uma necessidade de encenação, e a radicalização da "coragem de ser" de uma filosofia queer, tão doutorada no nível académico quanto polémica no seu activismo político, tudo parece apontar para o corpo também uma ilha, que a personagem do Luís transporta, de certa maneira subvertido no corpo-ensaio do citado trans Paul B. Preciado, antes cisgénero lésbica Beatriz, onde com o jeito de uma não violência sem heroicidade ("desejo-vos débeis e não valentes") se lida com sexo, drogas e biopolítica, título da tradução de um livro seu.

Lobo e Cão enquanto filme constitui um passo complexo, do ser ao existir, a que um verão de despedida adolescente dá forma, como no recente Libertad da catalã Clara Roquet, e talvez anuncie o regresso ao compromisso, de que a narrativa pode ser ela própria um exemplo, dos tempos de grande crise, da pandemia, da ameaça climática ou da guerra nuclear, em que se torna necessário esconjurar o medo de existir.

Numa perspectiva intertextual, que é muito intrínseca ao próprio processo de construção do cinema de Cláudia Varejão, poder-se-ia trazer à colação o Claro Enigma, livro de poemas do brasileiro Carlos Drummond de Andrade publicado em 1951, no clima profundamente existencialista do pós-guerra. O título tem sido considerado um oxímoro, talvez por quem não se atreve a tentar ver no lusco-fusco, e não percebe o aviso da epígrafe, precisamente Entre Cão e Lobo, no primeiro conjunto de 18 sonetos, que inclui A Ingaia Ciência, sob o signo de Nietzche e da sua morte de Deus. "A madureza, essa terrível prenda que alguém nos dá, (...) vê, posto que a venda interrompa a surpresa da janela... (e) sabe o preço exacto dos amores, dos ócios, dos quebrantos (...). O agudo olfacto, o agudo olhar, a mão, livre de encantos, se destroem no sonho da existência".

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page