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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Longe Da Vista - João Mário Grilo (1999)

O MUNDO DA FANTASIA ALÉM DAS PRISÕES

 

Embora não pareça constituir um programa previamente definido o cinema de Joao Mário Grilo tem privilegiado a abordagem de universos carcerários.  E repare-se que para além da situaçao da prisão em si que une os personagens dos diferentes filmes, o D Afonso VI de O Processo do Rei, o José Viana de O Fim do Mundo, o padre Ferreira no Japão de Os Olhos da Ásia e Canto e Castro no presente Longe da Vista, estamos em todos esses filmes perante personagens despojados de um discurso próprio.

Tanto o rei que ocupa com dificuldade o seu lugar no próprio sentido da impotência que o relato do tribunal procura demonstrar como o trabalhador rural para quem a linguagem do relato policial é totalmente estranha ou o padre jesuíta cuja crise de fé coloca no exterior os sinais que espera de Deus estão numa posição próxima da de Eugénio (Canto e Castro) em Longe da Vista um  presidiário  idoso que já nao sabe falar dos crimes pelos quais cumpre pena mas nas cartas que escreve a um camionista luso-americano cria um personagem fictício de nome Maria da Luz pensando que ainda há de ser por isto que um dia se hão de lembrar dele. Mas ao contrário de Eugénio os personagens dos filmes anteriores não parecem encontrar nenhuma narrativa capaz de lhes devolver um sentido è sua vida.


A fantasia que liberta

A prisão que o filme de João Mário Grilo retrata é um mundo rotineiro fechado mas de certa maneira doce. Não há a percepção aguda de uma violência que frequentemente acompanha o retrato que o cinema nos tem dado de outros ambientes prisionais. Essa opção de Joao Mário Grilo para além de eventualmente pretender expressar o seu próprio olhar sobre os meios prisionais que pôde observar permite considerar a prisão num sentido muito mais universal em que o espectador se pode reconhecer E é dessa prisão que o personagem de certa maneira se vai libertando através da fantasia.

De início trata-se apenas da resposta a um anúncio de jornal colocado na tentativa de encontrar uma correspondente para fins sentimentais por um luso-americano camionista algo isolado também embora    percorrendo as estradas de um vasto país.

Mas progressivamente a vida imaginada vai ganhando realidade e o personagem fictício começa a existir precisamente à medida que a saúde de Eugénio se vai degradando como que deixando de pertencer ao espaço da própria prisão.

Uma certa ambiguidade no plano sexual na medida em que o personagem construído é do outro sexo vai de certa maneira ser gerida num contexto por um lado de isolamento e por outro de relações mediadas onde a palavra substitui o corpo como acontece também com o trabalho de Rute (Rita Blanco). Ela é a namorada de Vasco (Francisco Nascimento), o novo companheiro de cela na prisão e atende linhas telefónicas de conteúdo erótico num contraponto a relações mediadas pela voz, pela solidão como forma outra de prisão e pela representação de papéis onde se atenua a fronteira entre a realidade e a ficção. 


O texto como realidade

Mas se Longe da Vista já seria desde logo um filme muito interessante no plano psicológico João Mario Grilo ultrapassa também os limites dessa prisão num trabalho atento sobre a linguagem, a narrativa e o texto. Logo na primeira cena em que Eugénio vê televisão saltando de canal em canal se caracteriza uma outra prisão que é cultural neste caso a dos modernos meios de comunicação onde a imagem se substitui à palavra e a própria possibilidade de um sentido esbarra no ritmo caótico do zapping. Curiosamente num dos programas em que o rápido percurso televisivo alterna, fala-se de sexo e de órgãos sexuais mas é ainda na instância da palavra que tudo parece passar-se. Esta caracterizaçao num ambiente cultural contemporâneo é aliás próxima da referência à Nagasaqui moderna pós bomba atómica mediada por Geraldine Chaplim em Os olhos da Ásia.

As cartas que Eugénio escreve são uma ficção que vai construindo diferentes realidades todas elas ultrapassando alguns limites iniciais. O tempo, a organização, a sequência vão dando credibilidade ao personagem fic­tício de Maria da Luz que de certa maneira se vai aproximando de Rute. Mas significativamente esse mundo fictício não provém de um puro imaginário interno. Eugénio vai construindo a sua história numa relação com os outros, desde Abel (Henrique Viana) companheiro de prisão e inicialmente confidente ou a irmã Idalina (Zita Duarte) que inicialmente copia as cartas e as recebe na sua caixa de correio, a Vasco com quem Eugénio estabelece uma relaçao em certo sentido paternal e a quem a história da Maria da Luz se transmite (e como se de uma herança se tratasse (aliás contrastando com a relação com a irmã centrada nos dólares enviados pelo americano)

O texto, a narrativa, as cartas tem assim diferentes autores e destinatários ao longo do tempo e da teia de relações em que se inscrevem não tendo como interlocutor somente o luso-americano a quem mais linearmente são escritas                                                

O texto e a narrativa surgem aliás numa outra cena muito curiosa em que Vasco é instruído pelo seu advogado sobre a his­tória que lhe convém contar no tribunal. Mais uma vez trata-se do confronto com um texto exterior tanto mais interessante quanto é dito pelo advogado na primeira pessoa invadindo o outro e a sua representação na ins­tância do discurso. Alias é Vasco o personagem que na realidade está próximo de José Viana em O Fim do Mundo parecendo não entender as palavras da instituição judicial onde é uma cultura exterior que se manifesta e por ventura até do D. Afonso VI de O Processo do Rei ou do Padre Ferreira de Os Olhos da Ásia.

Longe da vista as palavras parecem na realidade existir e o final podia ser exactamente o inverso do que diz o padre Ferreira de Os Olhos da Asia: nao eram só palavras, Julião.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 15/4/1999

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