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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Lotação Esgotada - Manuel Guimarães (1972)


 

Apesar de desprotegido do público e principalmente dos exibidores (que o estreiam no Porto quase com dois anos de atraso e sem o lançamento publicitário das obras mais mentecaptas de Constantino Esteves, Henrique Campos ou Augusto Fraga), este filme de Manuel Guimarães merece sem dúvida uma palavra de simpatia que não iludirá no entanto as insuficiências de um cinema limitado que mais não fosse o seu orçamento. Estamos perante um filme pobre, em que tudo quanto é técnica, e possa ser comparado com o cinema estrangeiro ou mesmo com o recente cinema português com a qualidade técnica por exemplo de A Promessa, se situa a um nível medíocre. Mas o cinema não se mede aos dólares como suporiam os fabricantes das superproduções de Holywood, da Cinecittá ou da espanhola Almeria, e por isso o mérito do nosso cinema não será abrir o Estoril ao itinerário de James Bond ou macaquear num cinema híbrido as convenções que asseguram uma subdistribuição europeia á moda das coproduções de António Vilar. E aí é que o sentido narrativo e a dignidade (porque não?) de Manuel Guimarães se situam a um nível muito diferente dos Vilares e dos Esteves - e é isso que nos temos de apressar a dizê-lo de uma forma bom clara.

 

Ingénuo em muitos aspectos, às vezes de uma simplicidade que se casa bem com os recursos financeiros limitados, Lotação Esguiada é um filme bem português e que de uma maneira geral nos reenvia para a análise da nossa sociedade (provinciana... o provincianismo não exclui as grandes cidades, a capital e os mecanismos mais amplos que o filme caricaturiza num cenário esquemático). Centrado num concelho da província, Lotação Esgotada desenvolve com alguma graça um retrato dos personagens centrais da política local, do seu burocratismo, da sua demagogia que não olha a meios. As situações são absurdas, os personagens e a acção esquemáticos mas são esses os traços que o filme aproveita nos saborosos diálogos, no ritmo narrativo de curtos «flash-back» ou na composição caricatural dos enquadramentos, numa salutar evidência do espírito crítico de Manuel Guimarães a alcançar um efeito que as comédias mais conseguidas do cinema português dos anos quarenta e cinquenta negligenciaram (à excepção talvez de alguns apontamentos de O Pálio das Cantigas de Francisco Ribeiro, em breves alusões à política portuguesa no tempo da guerra).

Lotação Esgotada parte de uma ideia de Artur Semedo (actor de teatro e no filme o protagonista, mas também um homem de cinema, com um filme realizado nos anos cinquenta, O Dinheiro dos Pobres, outro a aguardar estreia e talvez na linha do que temos vindo a comentar, Malteses, Burgueses e às Vezes, para além da produção de um dos melhores trabalhos satíricos no teatro da RTP, A Casa de Orates, a partir de O Alienista de Machado de Assis e da recente produção do filme do crítico Eduardo Geada, Sofia ou a Educação Sexual, também a estrear), desenvolvida a partir de uma vulgar notícia de um correspondente de um vespertino lisboeta que se alarmava pela impossibilidade do cemitério local receber mais defuntos. O prestígio do presidente da Câmara, aliás abastado proprietário de uma fábrica na região, e posto em jogo pela solução do problema - e a situação satírica que o filme cria, desenvolvendo nas suas linhas a rivalidade que lhe movem o vice-presidente e o presidente anterior, esboçando situações alusivas que o espectador facilmente localiza na preocupação pela sumptuosa inauguração, ou nos comentários à paralisação dos transportes em França por causa de uma greve de trabalhadores, que impedirá o regresso do corpo de um emigrante que iria inaugurar o novo cemitério. Há aliás uma intenção subterrânea que liga cenas como a do acidente do trabalhador na fábrica de Amaro Cordeiro, a do futebol e a da notícia da greve francesa. Igualmente, embora primários, os apontamentos respeitantes ao namoro dos filhos de Amaro e Severino pretendem lançar a atenção para o fenómeno da contestação (localizada pela leitura de «Fim da Utopia» de Marcuse), sujeita talvez também a uma crítica, implícita no papel simpático que o filme lhes destina. A oratória política, satirizada na sessão da Câmara em que se anuncia a inauguração do novo cemitério, e no funeral do Presidente que compõe a cena final, é um alvo bem explorado nos lugares-comuns de uma teatral «grandeza de sentimento» feita de uma megalomania que vê na simples povoação da Gasconda os gloriosos destinos históricos representados na obra do cemitério a que o Presidente dedica a sua vida. O desproporcionado elogio fúnebre do vice-presidente da Câmara prolonga a surda oposição a «obra» do Presidente voltada para os mortos, de quem como afirma na sessão da Câmara «os vivos devem ser dignos», mas que nos seus traços absurdos não exclui a saúde, e a própria vida dos conterrâneos, dos desígnios do seu oportunismo. Aliás essa aparente oposição é esquematizada num jogo em que ambos se socorrem dos mesmos processos em tempos diferentes. A este quadro, forçada aliás sem disfarces a sátira intencional, junta-se a presença do padre que não hesita na homilia em secundar a campanha do Presidente para o novo cemitério e para a defesa da saúde, para que se evite o desprestígio da Câmara por alguma morte inoportuna.

 

Se todos estes apontamentos sublinhados pela câmara numa caricatura que usa o absurdo um bocado à maneira de Pietro Germi de Seduzida e Abandonada, se revelam despretensiosos, mas inteligentes, não podemos no entanto considerar este filme mais do que una simples anedota, cujas virtudes se conjugam com os seus defeitos no reflexo que é de nós próprios. É talvez, honestamente deste cinema doméstico que podemos partir, deste cinema pobre sobre a nossa pobreza, deste cinema modesto sobre a nossa megalomania. Cinema menor é-o com certeza, técnica limitada (a fotografia, o som e as interpretações irregulares com excepçao para Miguel Franco), ideologicamente restringindo na piada inofensiva e permitida uma visão metodologicamente mais certa e esteticamente mais rica dos males que esboça atacar.

 

Cinema menor, mas digno. Cinema comercial, mas que surpreende na pretensão de alcançar quase o impossível. Cinema cómico, mas eficaz se considerarmos que a evidencia do ridículo é um modo de criticar tabus e regras radicadas entre nós.

 

Não é, no entanto, este o cinema que Manuel Guimarães gostaria de fazer. («A única possibilidade que surgiu foi esta. Agarrei-a. Mas procurei dizer ao público algo que valesse a pena e não com o intuito de o explorar com as idiotices que em geral as nossas comédias têm abordado», entrevista ao Diário de Lisboa, 10/2/72). Vítima de uma política de subsídios do Fundo do Cinema (agora modificada na nova lei do cinema, com resultados a aguardar) que nunca esteve atenta aos cineastas portugueses de quem algo havia a esperar, favorecendo pelo contrário aqueles cujos filmes imbecilizantes não deixam de interessar a quem se sente incomodado com Lotação Esgotada. Guimarães não demonstrou nunca, talvez as qualidades que o seu papel de certo modo inovador no início da década de cinquenta faria prever. Efectivamente, após ter-se iniciado no cinema como assistente de Manuel de Oliveira em Aniki-Bóbó, Manuel Guimarães, que frequentara a Escola de Belas Artes do Porto e se iniciara na pintura e nas artes gráficas, inicia a sua carreira com a curta-metragem O Desterrado, que alcançou o Prémio Paz dos Reis e foi talvez precursora do interesse de uma posterior geração pelo documentário de curta-metragem em que se ensaiou no final dessa década o «novo cinema português», tendo no mesmo ano realizado Saltimbancos, tentativa de um cinema neo-realista português que o primeiro filme do «novo cinema português», Dom Roberto, retomaria aliás também a partir de um texto de Leão Penedo. Embora não isentas de erros as duas obras seguintes, com colaboração de Alves Redol, situam-se na linha de Saltimbancos, mas Guimarães, endividado pelos fracassos económicos, tem que renunciar dedicando-se de novo às ilustrações na imprensa. Desde A Costureirinha da Sé todos os seus filmes são obras que não considera propriamente suas, de tal maneira se sujeitou às oportunidades que lhe surgiram (ver a citada entrevista) mas talvez Lotação Esgotada ainda mereça depositar esperanças neste realizador já de sessenta anos que teve o mérito de não se deixar seduzir pelas fáceis soluções dos da sua geração, e se apresenta solitário, mas ainda com projectos que os novos e mais avultados fundos do Instituto Nacional do Cinema devem sustentar. Guimarães não é certamente um criador inventivo, um nome a juntar a nova geração do cinema português como acontece com Manuel de Oliveira, mas situa-se com Jorge Brun do Canto (A Cruz de Ferro) num caminho digno que vê o seu legítimo lugar roubado pelos degradantes filmes do cançonetismo nacional.

 

Lotação Esgotada é uma obra menor que não merecerá lotações esgotadas. Mas que não é justo tornar-se um filme esquecido

 

A.   Roma Torres, Voz Portucalense, 9 de Março de 1974

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